Procuração em causa própria: título translativo da propriedade imobiliária

*Silmar Lopes e Lucas Fernandes

O mandato, instituto também conhecido como procuração, possui natureza de negócio jurídico, porém com algumas particularidades. A sua regulamentação, de modo geral, se encontra na lei 10.406/2002 – Código Civil Brasileiro – a partir do artigo 653.

Uma das espécies do instrumento de mandato é a que se encontra prevista no artigo 685 do Código Civil e possui características que vão além da básica definição do instituto. Vejamos o teor do dispositivo:

Art. 685. Conferido o mandato com a cláusula “em causa própria”, a sua revogação não terá eficácia, nem se extinguirá pela morte de qualquer das partes, ficando o mandatário dispensado de prestar contas, e podendo transferir para si os bens móveis ou imóveis objeto do mandato, obedecidas as formalidades legais.

Importa ressaltar que o mandato com cláusula “em causa própria” não se confunde com o mandato com cláusula de “negócio consigo mesmo”, prevista no artigo 117 do mesmo diploma legal. Vejamos:

Art. 117. Salvo se o permitir a lei ou o representado, é anulável o negócio jurídico que o representante, no seu interesse ou por conta de outrem, celebrar consigo mesmo.

Se tratando de procuração com cláusula “em causa própria”, tendo como objeto poderes inerentes a imóvel, é de suma importância que sejam observados todos os requisitos para a sua validade e, principalmente, para que se constitua em título translativo passível de ingresso no fólio real.

Vejamos as principais peculiaridades da procuração com cláusula “em causa própria” tecendo algumas comparações com a procuração comum – ad negotia – com “cláusula de negócio consigo mesmo”.

Sendo a procuração ad negotia – com “cláusula de negócio consigo mesmo”, a morte da parte outorgante gera a sua extinção (art. 682, II, Código Civil). Já a procuração com cláusula “em causa própria”, por força no disposto do artigo 685 do Código Civil, não se extinguirá pela morte.

Ademais, a revogação da procuração ad negotia – com “cláusula de negócio consigo mesmo”, ainda que possua cláusula expressa de irrevogabilidade, poderá ser revogada e a revogação produzirá plenos efeitos, porém, fica o outorgante sujeito às perdas e danos em razão da revogação. Tal situação não se aplica à procuração com cláusula “em causa própria”, uma vez que a lei impõe a ausência de eficácia da revogação deste mandato. Outrossim, se a essa cláusula de negócio consigo mesmo se somar a cláusula de irrevogabilidade do art. 684 do Código Civil (inserida quando há um negócio jurídico subjacente e/ou inserida no exclusivo interesse do mandatário outorgado), estaremos igualmente diante de uma procuração ad negotia, porém com a peculiaridade de que a revogação unilateral pelo outorgante mandante será ineficaz.

Ambas as situações acima de procuração ad negotia com a “cláusula de negócio consigo mesmo” se distinguem da procuração com a “cláusula em causa própria”, uma vez que a lei impõe não apenas a ineficácia total de eventual revogação, mas também outros importantes efeitos: a) a não extinção (leia-se “não cessação” ) do mandato pela morte de qualquer das partes; b) a transmissibilidade ao outorgado dos bens móveis ou imóveis objeto do mandato; c) a dispensa automática (leia-se “por força de lei”) do dever de prestação de contas.

Quando falamos em procuração com cláusula “em causa própria” de bem imóvel, mister muita atenção para a maior das peculiaridades: trata-se de negócio jurídico equiparado à compra e venda tendo, inclusive, que ser lavrada por instrumento público, sendo obrigatória a minuciosa descrição dos termos do negócio e, principalmente, conter a manifestação de vontade tanto do outorgante/vendedor quanto do outorgado/comprador.

Inclusive, é imperioso salientar que os emolumentos para lavratura de procuração com cláusula “em causa própria” de bem imóvel são exatamente os mesmos relativos à lavratura de escritura de venda e compra.

Recentemente o Superior Tribunal de Justiça – S.T.J. proferiu julgamento no Resp. 1.345.170-RS (informativo 695) que, máxima vênia, acabou por gerar mais confusão, pois indicou que a procuração em causa própria não teria força translativa. Porém ao expor os fundamentos acabou por se equivocar ao relatar que esta procuração não possui a efetiva manifestação de vontade do outorgado, sendo então um negócio jurídico unilateral.

Por óbvio que se a procuração não tiver todos os requisitos para ser caracterizada como sendo procuração com cláusula “em causa própria”, pouco importa se assim for intitulada, pois a sua natureza será simplesmente de procuração ad negotia com “cláusula de negócio consigo mesmo”.

No Estado de Goiás, o Código de Normas e Procedimentos do Foro Extrajudicial de Goiás – CNPFE/GO regulamenta de forma brilhante o referido tema indicando, inclusive, se tratar de instrumento público equivalente à compra e venda. Vejamos o teor do artigo 463 do CNPFE/GO:

Art. 463. A procuração em causa própria relativa a bem imóvel conterá os mesmos requisitos e elementos exigíveis para a compra e venda, como os relativos ao objeto, preço e condições de pagamento, e por suas normas serão regidas.

Inclusive, por força do referido dispositivo – que impõe os requisitos da compra e venda para a procuração com “cláusula em causa própria”, é importante destacar que, quando lavrada eletronicamente, deve ser observada a regra de competência do artigo 19, § 2º[1] e não a regra genérica do parágrafo único do artigo 20[2], ambos do Provimento 100 do Conselho Nacional de Justiça.

Por fim, cumpre destacar que, no Estado de Goiás, o próprio CNPFE/GO atribui à procuração com cláusula “em causa própria” poder para transferência do domínio, nos termos do seu artigo 461. Vejamos:

Art. 461. A procuração em causa própria pode ser outorgada em solução definitiva de negócio jurídico pelo outorgante em favor do outorgado, com natureza contratual, autorizando a transferência de domínio de bem móvel ou imóvel pertencente ao outorgante.

Portanto, podemos concluir que a procuração com cláusula “em causa própria” deve conter todos os requisitos legais e normativos e, consequentemente, sendo assim caracterizada, passa a produzir todos os seus efeitos, especialmente quanto à sua força translativa de propriedade.

*Silmar Lopes é a advogado e professor e Lucas Fernandes é tabelião titular do 8º Tabelionato de Notas de Goiânia (GO).

[1] Art. 19. Ao tabelião de notas da circunscrição do imóvel ou do domicílio do adquirente compete, de forma remota e com exclusividade, lavrar as escrituras eletronicamente, por meio do e-Notariado, com a realização de videoconferência e assinaturas digitais das partes. § 2º Estando o imóvel localizado no mesmo estado da federação do domicílio do adquirente, este poderá escolher qualquer tabelionato de notas da unidade federativa para a lavratura do ato.

[2] Art. 20. Ao tabelião de notas da circunscrição do fato constatado ou, quando inaplicável este critério, ao tabelião do domicílio do requerente compete lavrar as atas notariais eletrônicas, de forma remota e com exclusividade por meio do e-Notariado, com a realização de videoconferência e assinaturas digitais das partes. Parágrafo único. A lavratura de procuração pública eletrônica caberá ao tabelião do domicílio do outorgante ou do local do imóvel, se for o caso.