Parâmetros éticos na relação entre indústrias farmacêuticas e a classe médica

Ingrid Carvalho de Oliveira

A participação de profissionais médicos em congressos técnicos e científicos patrocinados por indústrias farmacêuticas; o recebimento de brindes e presentes entregues por empresas do ramo farmacêutico em eventos cujo patrocínio é por elas oferecido; bem como a intensa presença de representantes comerciais das referidas indústrias em hospitais, clínicas e consultórios para fins de oferta de medicamentos têm sido alvo de intensos debates no seio da deontologia e diceologia médicas.

A título de exemplo, no ano de 2012, a Revista Ser Médico do CRESMESP, de outubro do referido ano, trouxe entrevista com a médica americana Márcia Angel, editora-chefe da revista científica médica New England Journal Medicine, a qual abordou a questionável ética que laboratórios farmacêuticos estariam a se utilizar a fim de traçarem estratégias para angariar estudos e fundos pecuniários, colocando-se à prova a postura que médicos deveriam adotar frente ao marketing que algumas indústrias farmacêuticas estariam a realizar.

Partindo-se do juramento de Hipócrates, prestigia-se que a atenção do profissional da medicina deve ser voltada à saúde do ser humano, devendo o referido expert agir com o total zelo e desempenho ético da profissão, abstendo-se de qualquer forma que possa expressar exploração por parte de terceiros que objetivam unicamente ao lucro financeiro.

A corroborar com tal juramento, o Código de Ética Médica, por meio do Capítulo VIII, artigo 68, alerta ser vedado ao médico exercer a profissão com interação ou dependência de farmácias, laboratórios farmacêuticos, óticas ou quaisquer organizações destinadas à fabricação, manipulação ou comercialização de produtos de prescrição de qualquer natureza.

Ocorre que, por meio do Parecer 21/2012, o Conselho Federal de Medicina abriu, timidamente, espaço para tal interação, ao estabelecer que orientações que viessem a tratar das boas práticas no relacionamento entre indústria farmacêutica e a classe médica deveriam ser reavaliadas pelo Conselho Federal de Medicina e INTERFARMA.

Em razão do parecer emanado e no mesmo ano de elaboração deste, o CFM, a Associação Médica Brasileira (AMB), a Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) e INTERFARMA – Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa – proferiram posicionamento sobre as boas práticas no relacionamento entre a classe médica e indústrias farmacêuticas, restando estabelecidas diversas regras.

Inicialmente, consignou-se, por meio do referido posicionamento, que a presença de médicos em eventos a convite das referidas indústrias deveria ter como objetivo a disseminação do conhecimento técnico-científico, não podendo se condicionar a qualquer forma de compensação por parte do profissional à empresa patrocinadora.

Um segundo ponto importante ressaltou a vedação ao recebimento de qualquer espécie de remuneração (direta ou indireta) por parte do profissional médico pelo simples acompanhamento em evento realizado, exceto se neste houvesse prestado serviços, fixando-se tal condição em contrato escrito.

As proibições consignadas no posicionamento proferido não alcançaram, porém, a possibilidade de indústrias farmacêuticas procederem com o pagamento de despesas relacionadas a transporte, refeições, hospedagem e taxas de inscrição em eventos patrocinados pelas referidas empresas, porém, limitou-a ao profissional médico convidado, sendo vedado o pagamento ou o reembolso de despesas a familiares, acompanhantes ou convidados do profissional.

A percepção de brindes pelos profissionais da medicina também não restou vedada, desde que os referidos prêmios estejam em conformidade com os padrões definidos pela legislação sanitária em vigor, devendo relacionar-se estritamente à prática médica, como, por exemplo, o recebimento de publicações, exemplares avulsos de revistas científicas (excluídas as assinaturas periódicas) e modelos anatômicos.

Todas as diretrizes traçadas pelo CFM, AMB e SBC e INTERFARMA no ano de 2012 foram ratificadas em 2017, sendo acrescidas de algumas novidades.

Dentre as novas regras, vale citar que empresas e aderentes submetidos ao Código de Conduta da INTERFARMA poderão contratar profissionais de saúde, desde que devidamente habilitados para prestarem serviços na área de formação, sendo permitido a esse profissional receber remuneração adequada e alinhada com o valor justo de mercado, conforme a experiência profissional que possuir, além de ter quitadas as despesas com transporte, hospedagem e alimentação, limitadas ao período em que o contratado estiver dedicado à prestação do serviço, sendo, porém, vedado o pagamento e/ou reembolso de despesas referentes a taxas de emissão de passaporte e/ou solicitação de visto de viagem dos referidos profissionais, quando contratados para prestação de serviços.

Quando contratados para atuarem como palestrantes em simpósios, congressos, reuniões, conferências ou quaisquer outros eventos, o respeito à plena liberdade na formulação de opiniões e análises é integralmente garantido ao profissional médico, validando-se a autonomia que é inerente à profissão.

Por fim, a mera mercantilização de produtos deve ser afastada, devendo tal diretriz ser observada por representantes comerciais de indústrias farmacêuticas quando ofertarem produtos em hospitais, consultórios e clínicas, devendo sempre se preferir a outorga de esclarecimentos referentes a benefícios e riscos que os produtos possam oferecer à simples oferta. Igualmente, o pagamento de refeições a profissionais médicos por parte das citadas indústrias é expressamente permitido, desde que realizado com o objetivo de discutir ou trocar informações científicas ou educacionais quanto aos produtos ofertados, limitando-se tal refeição a valores modestos e em local adequado para troca de informações, devendo o representante da empresa se fazer presente durante todo tempo reservado ao encontro, não sendo admitido o pagamento de refeições ou quaisquer outras despesas para acompanhantes dos profissionais médicos convidados.

Desse modo, nota-se que a integração entre profissional médico e indústrias farmacêuticas não é totalmente vedada, devendo, porém, ser realizada com equilíbrio, atendo-se aos parâmetros estabelecidos pelo Código de Ética Médica, pelas disposições constantes nas resoluções dispostas pelo Conselho Federal de Medicina, bem como compromisso firmado entre CFM, AMB e SBC e INTERFARMA em 2012, ratificado e atualizado no ano de 2017. Obedecendo-se às citadas disposições, ambos os lados estarão resguardados juridicamente, efetivando-se à eficiência esperada na prestação à saúde da população.

*Ingrid Carvalho de Oliveira, advogada do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás e fundadora do escritório Ingrid Carvalho Advocacia Personalizada