Juízo das Garantias (Lei n. 13.964/2019)

1. Considerações iniciais 

A Lei n. 13.964, publicada no Diário Oficial da União (DOU) do dia 24.12.2019[1], referente ao chamado “pacote anticrime” (antigo PL n. 10.372/2018), e que alterou artigos do Código de Processo Penal (CPP), estabeleceu, entre outros pontos, a figura do “Juiz das Garantias”, tema que atualmente vem sendo objeto de intensa discussão[2], sobretudo na imprensa e nas redes sociais. 

Previstos para entrar “em vigor após decorridos 30 (trinta) dias de sua publicação oficial” (art. 20), ou seja, em 23.1.2020[3], os dispositivos inerentes ao “Juiz das Garantias”, estabelecem a responsabilidade pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos fundamentais do investigado (art. 3º-B). Com as mudanças, o juiz que durante o momento da investigação praticar qualquer ato correspondente a esta fase, ficará impedido de funcionar posteriormente no processo (art. 3º-D)[4].

A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) posicionou-se publicamente contrária ao instituto “Juiz das Garantias”[5]. Em “nota pública”, a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) também se manifestou no sentido de que o “juiz de garantias” dificultará, “ainda mais, o combate ao crime e à corrupção no país”, tornando “mais burocrático e complexo o processo penal brasileiro, fortalecendo somente a tutela processual do acusado”[6]. 

No entanto, para tentar entender essa figura jurídica, importante destacar, de antemão, que os dispositivos da Lei n. 13.964/2019 inerentes ao “Juiz das Garantias” foram praticamente os mesmos contidos no Projeto de Lei do Senado n. 156/2009, que recebeu o n. 8.045/2010 na Câmara dos Deputados, buscando implementar no país um “Novo Código de Processo Penal”. 

Aliás, o texto básico do anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal que embasou os Projetos de Lei n. 156/2009 e 8.045/2010 foi fruto de um intenso trabalho conjunto dos membros de uma Comissão Especial de juristas compostos por professores, ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), membros do Ministério Público, delegado da Polícia Federal, advogados, consultores legislativos, dentre outros[7].

O tema, portanto, veio sendo discutido no Congresso Nacional desde o ano de 2009 (mais de 10 anos), com uma ideia simples[8]: o juiz que atua e profere decisões durante a investigação criminal (fase inquisitória) não será o mesmo que presidirá a futura ação penal. E a razão disso é assegurar maior concretude para um princípio fundamental do processo: o da imparcialidade do julgador[9].

De acordo com a “exposição de motivos” do Projeto de Lei n. 156/2009:

“Para a consolidação de um modelo orientado pelo princípio acusatório, a instituição de um juiz de garantias, ou, na terminologia escolhida, de um juiz das garantias, era de rigor. Impende salientar que o anteprojeto não se limitou a estabelecer um juiz de inquéritos, mero gestor da tramitação de inquéritos policiais. Foi, no ponto, muito além. O juiz das garantias será o responsável pelo exercício das funções jurisdicionais alusivas à tutela imediata e direta das inviolabilidades pessoais. A proteção da intimidade, da privacidade e da honra, assentada no texto constitucional, exige cuidadoso exame acerca da necessidade de medida cautelar autorizativa do tangenciamento de tais direitos individuais. O deslocamento de um órgão da jurisdição com função exclusiva de execução dessa missão atende à duas estratégias bem definidas, a saber: a) a otimização da atuação jurisdicional criminal, inerente à especialização na matéria e ao gerenciamento do respectivo processo operacional; e b) manter o distanciamento do juiz do processo, responsável pela decisão de mérito, em relação aos elementos de convicção produzidos e dirigidos ao órgão da acusação.

Evidentemente, e como ocorre em qualquer alteração na organização judiciária, os tribunais desempenharão um papel de fundamental importância na afirmação do juiz das garantias, especialmente no estabelecimento de regras de substituição nas pequenas comarcas. No entanto, os proveitos que certamente serão alcançados justificarão plenamente os esforços nessa direção” (Disponível em: <https://legis.senado.leg.br/sdleggetter/documento?dm=4574315&ts=1571775869562&disposition=inline>. Acesso em 27 dez. 2019).

Naquela época (2009), o então ministro Hamilton Carvalhido, do STJ, que coordenou a comissão de juristas, chegou a ressaltar a importância para o ordenamento jurídico brasileiro da figura do “juiz das garantias”. Para ele: “a figura do juiz das garantias é hoje algo que tem unanimidade na Academia, fora da Academia e em todas as experiências processuais de Estados que buscam uma legislação de ordem democrática”[10].

A necessidade da proposta foi também demonstrada pela juíza federal Simone Schreiber em artigo jurídico:

“Quando, finalmente, a investigação é encerrada com seu clímax, que é a chamada operação policial, na qual se expedem comumente mandados de busca e apreensão e de prisão cautelar, o juiz está absolutamente familiarizado com os fatos. Ele participou ativamente da investigação policial e já formou um juízo sobre o que ocorreu, quem são as pessoas envolvidas etc. Nesse cenário, é evidente que a defesa entra em desvantagem, e sua fala já não merece a mesma atenção e credibilidade do juiz. Ademais, se foi ele próprio quem avaliou a pertinência e a legalidade das medidas probatórias realizadas na fase pré-processual é bastante improvável que ele desqualifique a prova que foi produzida e mude de ideia quanto ao resultado que foi colhido” (sic)  (SCHREIBER. Simone. O Juiz de Garantias no Projeto do Código de Processo Penal. Boletim de IBCCrim, ano 18, n. 213, agosto de 2010, p. 2).

Por fim, no que alude as reações à figura do “juiz de garantias” sob o fundamento genérico de que o Estado não dispõe de orçamento para suprir as demandas que a criação dos novos cargos determinará, algumas rápidas ponderações merecem destaque; primeiro, a Lei n. 13.964/2019 condiciona a implantação do “Juiz das Garantias” à aprovação em lei de organização judiciária (art. 3º-E), e, segundo, a questão envolve, rigorosamente, menos criação de cargos e mais organização para substituição de um juiz por outro (art. 3º-D, parágrafo único, e art. 3º-E), de modo que o magistrado que atuar como “Juiz das Garantias”, por exemplo, ficará liberado para atuar como juiz da causa em outro processo, e vice-versa.

  1. Eficácia da lei processual no tempo

O art. 2º, do Código de Processo Penal em vigor, estabelece que “a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”. Desse texto, pode-se dessumir o princípio “tempus regit actum” com dois efeitos:

a . Os atos processuais realizados sob a égide da lei anterior são considerados válidos e não são atingidos pela nova lei processual, a qual só vige dali em diante.

b . As normas processuais têm aplicação imediata, pouco importando se o fato que deu origem ao processo é anterior à sua entrada em vigor.

Isso significa dizer que a partir do dia 23.1.2020, quando entrar em vigor as alterações no CPP promovidas pela Lei n. 13.964/2019, os juízes não poderão mais julgar as ações penais em que tenham servido na fase preliminar (investigação), por força do impedimento, causa objetiva de nulidade da decisão (art. 3º-D).

  1. Conclusões

Por todo o exposto, conclui-se que “Juiz das Garantias” não se trata de instituto que dificultará “o combate ao crime e à corrupção no país”, ou propiciará a burocratização do processo penal brasileiro, “fortalecendo somente a tutela processual do acusado”; pelo contrário, trata-se de um instrumento que se encontra afinado com o modelo acusatório do processo penal, de modo a assegurar a isenção e a imparcialidade do julgador no controle da legalidade da investigação criminal e na salvaguarda dos direitos individuais.

A partir do dia 23.1.2020, quando entrar em vigor as alterações no CPP pela Lei n. 13.964/2019, os juízes, por se encontrarem impedidos, não poderão mais julgar as ações penais em que tenham servido na fase investigatória, sob pena de nulidade.

 *Roberto Serra da Silva Maia é mestre em Direito, Professor universitário, advogado criminalista e presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-GO

[1] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm>. Acesso em 27 dez. 2019.

[2] O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), chegou a lançar uma consulta sobre a estruturação e implementação no Poder Judiciário do “juiz das garantias”, conforme Portaria CNJ n. 214/2019.

[3] Conforme a regra de contagem do art. 8º, § 1º da Lei Complementar n. 95/1998, incluem-se os dias do começo e do fim do prazo.

[4] Atualmente, um mesmo juiz participa da fase de investigação e profere a sentença, porque, em regra, foi o primeiro a tomar conhecimento do fato (art. 83, CPP).

[5] Disponível em: <https://www.amb.com.br/pacote-anticrime-manifestacao-da-amb-contra-lei-que-manteve-o-juiz-das-garantias-repercute-na-imprensa/?doing_wp_cron=1577487578.3672609329223632812500> Acesso em 27 dez. 2019.

[6] Disponível em: <https://www.conamp.org.br/pt/comunicacao/noticias/item/2686-conamp-aponta-graves-riscos-na-implementacao-da-medida-juiz-de-garantias.html> Acesso em 27 dez. 2019.

[7] Antonio Correa, Antonio Magalhães Gomes Filho, Eugênio Pacelli de Oliveira, Fabiano Augusto Martins Silveira, Felix Valois Coelho Júnior, Hamilton Carvalhido, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Sandro Torres Avelar e Tito Souza do Amaral.

[8]  Existe na Itália sob a denominação de “giudice per indagini preliminari”.

[9] Cf. Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, artigo 8. Garantias judiciais: “1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza”.

[10] Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI83020,11049-Comissao+de+juristas+entrega+o+anteprojeto+do+novo+CPP>. Acesso em 27 dez. 2019.