Covid-19- Possíveis crimes pelo descumprimento do isolamento social

*Tiago Ribeiro

Governadores e prefeitos têm ameaçado os cidadãos à prisão devido o descumprimento de medida de isolamento social previstas em decretos, portarias ou atos normativos. Assim, talvez, agindo pelo empoderamento advindo da decisão da ADI-6341, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, que decidiu pela autonomia dos governadores e prefeitos para tomada de medidas contra o enfrentamento da proliferação da Pandemia da Covid- 19.

De acordo com a Lei nº 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre medidas para o enfrentamento emergencial decorrente da Covid-19, há o estabelecimento de várias restrições que poderão ser adotadas pelas autoridades governamentais no âmbito de suas competências, como medidas de isolamento social, quarentena e determinações compulsórias para realização de exames e testes, dentre outros. Com a instituição dessa lei, surgem algumas questões: existe legitimidade para tomada de decisões no combate efetivo da pandemia para além do previsto no Código Penal? As infrações cometidas configuram crime? As pessoas podem ser presas caso infrinjam os instrumentos normativos decretados? e o direito fundamental de ir e vir? Abaixo apresentamos as previsões legislativas e jurisprudenciais, que podem ser adotadas diante do momento atual.

Porém, é oportuno mencionar, que o direito não é estático, e a contrário sensu está em constante movimento, numa tentativa de evolução, pelo menos em tese. Conforme magistralmente explicitado por Fustel de Coulanges, em A Cidade Antiga, “Não está na natureza do direito ser absoluto e imutável. O direito modifica-se e evolui como qualquer obra humana. Cada sociedade tem seu direito, com ela se formando e se desenvolvendo, com ela se transformando e, enfim, com ela seguindo sempre a evolução de suas instituições, de seus costumes e de suas crenças.” Nessa perspectiva, o presente texto tem por objetivo apresentar algumas contribuições informativas para leigos na matéria jurídica e experts de outras ciências.

No capítulo III do Código Penal, estão discriminados os tipos penais concernentes à proteção da saúde pública. A doutrina do Prof. Sanches subdivide as espécies desses crimes como sendo de perigo concreto e de perigo abstrato ou presumido, aquele

caracterizado pela comprovação do risco de lesão e indicando quem efetivamente foi exposto ao perigo e este em que não é necessário a constatação do risco real, sendo absolutamente presumido.

Dentre os tipos penais previstos no Código Penal, podemos destacar três. O primeiro se refere ao Artigo 267, que em seu caput prevê “Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos: Pena – reclusão, de 10 a 15 anos”. Nesse artigo está previsto o crime de Epidemia em sua rubrica radical, cujo bem tutelado é a incolumidade pública. Contudo, exige-se do agente criminoso uma conduta dolosa, tendente a propagar os germes patogênicos, que sabe e tem consciência ser portador. O ilustríssimo jurista e doutrinador Fragoso alerta que epidemia “não é qualquer moléstia infecciosa e contagiosa, mas somente aquela suscetível de difundir-se na população, pela fácil propagação de seus germes, de modo a atingir, ao mesmo tempo, grande número de pessoas, com caráter extraordinário (ex. tifo, peste, poliomielite, influenza, raiva etc.)”, acrescentamos aqui o COVID-19.

Interessante notar que o tipo penal em discussão é passível de consumação através da contaminação e de sua tentativa. Como bem cita Sanches, na hipótese em que o agente emprega os meios necessários à propagação da doença, mas somente uma pessoa é contaminada, em razão da pronta intervenção da autoridade sanitária é possível a aplicação do referido tipo penal. Ao considerar o Brasil, por exemplo, pode ser que em determinada região não haja casos confirmados da doença contagiosa e, por saber disso, um determinado agente contaminado, consciente de sua condição, se dirige à referida localidade com a finalidade de propagação de sua doença. Nestas circunstâncias, seu crime deve ser tipificado pelo artigo 267, do Código Penal.

Ainda sobre o crime apontado no Art. 267 do Código Penal, há no parágrafo 1º uma majorante de pena em caso de resultar morte, sendo também considerado como crime Hediondo nos termos do art. 1º, inciso VII, da Lei 8.072/90 (Lei de crimes Hediondos), bem como, a previsão no parágrafo 2º da forma culposa. como aquele que provocar a propagação acompanhada de negligência, imprudência ou imperícia responde por crime.

Sobre o processamento, há previsão de ação penal pública incondicionada de titularidade do Ministério Público como autor da ação e existe um tipo penal específico no caso de causar epidemia em lugar sujeito a administração pública, previsto no artigo 292, do Dec-Lei 1.001/69 (Código Penal Militar).

O segundo tipo penal diz respeito ao artigo 268 em que dispõe: “Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa: Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa”. É nesse artigo que tem sido enquadrado algumas pessoas que desobedecem ao isolamento social. O crime está relacionado à proteção da incolumidade pública com referência à saúde coletiva, sendo considerado um crime de menor potencial ofensivo, assim chamado devido a pena imposta, com processamento perante o Juizado Especial Criminal. Trata-se de norma penal que exige complemento às chamadas normas penais em branco para sua eficácia jurídica e social.

No parágrafo único do artigo 268, há uma majorante se o crime é praticado por funcionário da saúde pública ou que exerce profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro, em razão do dever profissional de zelar de maneira singular da saúde pública.

Entendemos ser perfeitamente possível o enquadramento daqueles que descumprem as normas sanitárias de autoridades governamentais estaduais e municipais ao tipo penal do artigo 268. Por exemplo, nas hipóteses que a norma prevê isolamento social com fechamento do comércio e o agente comerciante comparece e abre seu estabelecimento como se nada tivesse acontecendo, ou diante de norma que prevê a circulação de maneira restrita a estabelecimentos de atividades essenciais e há o descumprimento, sendo as pessoas vistas em parques ou outros lugares que gera aglomerações, com um índice alto de contaminação e propagação, é possível a aplicação do referido tipo penal.

Há, ainda, o tipo penal do artigo 269 em que dispõe: “Deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória: Pena-detenção, de seis meses a dois anos, e multa”. Note que, nesse tipo penal, o sujeito é o médico, tratando de crime próprio. É também um crime de menor potencial ofensivo com tramitação no Juizado Especial Criminal e com aplicação das devidas medidas despenalizadoras. No caso da Covid-19, sendo, portanto, uma doença de notificação compulsória, é de extrema importância sua notificação, para que os órgãos de saúde pública entendam a evolução da pandemia em território nacional e pensem nas soluções mais eficazes de combate a sua propagação e, por conseguinte, no relaxamento das medidas restritivas impostas, de maneira técnica e cientifica.

Quanto à existência de crime, fica evidente que ele pode ser caracterizado e que os sujeitos infratores estão correndo o risco de serem presos, uma vez que, o direito de ir e vir não é absoluto, e como os demais direitos fundamentais podem sofrer limitações, claro que, com a devida proporcionalidade e razoabilidade, vistos a necessidade de assegurar um bem maior, in casu, a vida.

Diante disso, podemos concluir que a prisão é medida excepcional devido ao descumprimento do isolamento social imposto, mas é perfeitamente possível atribuir aos agentes infratores a prática dos crimes acima expostos. Por fim, oportuno mencionar a atual portaria interministerial de nº 5/2020 que dispõe sobre o isolamento e quarentena e outras medidas compulsórias, com previsão de responsabilidade civil, administrativa e penal dos agentes infratores e enquadramento no artigo 330, do Código Penal, que prevê o crime de desobediência.

*Tiago Ribeiro é advogado atuante nas áreas penal e trabalhista, prestando serviços na seara consultiva, parecerista jurídico e tribunal do júri. Bacharel em Direito pela UNIALFA – Universidade Alves Faria. Pós-Graduado em Ciências Penais pela ESMEG (Escola Superior de Magistratura de Goias). Está no instagram @tiagoribeiros e E-mail: tiagoribeiro.juridico@gmail.com