A valoração axiológica das normas

*Kathiúscia Mariano Silva

Imaginemos a seguinte hipótese: alguém desfere um chute numa pessoa. Se causar algum tipo de lesão leve, este ato é tipificado no artigo 129 do Código Penal e prevê uma pena de detenção de três meses a um ano. Se este mesmo chute for dado num cachorro, será considerado maus tratos a animal doméstico e enquadrado no artigo 32,§ 2º-A, da Lei de Crimes Ambientais, com pena de reclusão de dois a cinco anos. Será que o legislador deixou de considerar o princípio da razoabilidade ao produzir uma lei que valora mais um cão do que uma pessoa?

O tratamento do direito penal e processual penal a estes dois casos são completamente distintos, pois na lesão corporal leve o agressor tem direito a fiança na Delegacia de Polícia e não pode ficar preso. No caso de ser processado haverá a transação penal ou a suspensão condicional do processo, ou seja, o agressor não será preso ou condenado a alguma pena restritiva de liberdade. Já no caso de maus tratos a cães e gatos o agressor será autuado em flagrante na fase policial sem direito a fiança, visto que se trata de crime com pena de reclusão e somente o Poder Judiciário poderá liberar este autuado. O processado não tem direito a transação penal ou a suspensão condicional do processo, podendo ser condenado a uma pena de prisão.

O projeto de lei nº 1095, de 25/02/2019, de autoria do deputado federal Fred Costa do Patriotas/MG foi transformado na Lei nº 14.064, de 29/09/2020, conhecida por “Lei Sansão”. Essa Lei criou uma qualificadora no artigo 32 da Lei nº 9.605/98, em casos de crimes de maus-tratos se praticados contra gatos e cachorros, prevendo pena de reclusão de 02 a 05 anos, multa e proibição da guarda. Ao aumentar as penas, essa norma desestimula violações aos direitos dos animais, para que a crueldade contra esses seres vivos deixe de ser considerada banal ou corriqueira. Porém, os legisladores “esqueceram” dos equinos, bovinos, aves, suínos, caprinos, dentre outros animais domésticos, que deveriam ter a mesma proteção legal.

O tipo penal está intimamente ligado à concepção de valor. O legislador, por escolha de política criminal, tutela determinados valores e os transforma em bens jurídicos, considerados mais importantes a serem protegidos pelo direito penal, em consonância com o princípio da subsidiariedade. Assim, anterior fase propriamente jurídica de elaboração da lei penal, tem-se uma análise contextual histórico-social do comportamento humano. A inserção de valores sociais em determinados grupos de indivíduos é preponderante para a construção do tipo penal incriminador. Portanto, é óbvio que o direito não tutela senão aquilo que já foi objeto de valoração: em outras palavras, a valoração precede a tutela.

Desta forma, a criação legislativa, tem-se em primeiro momento a aferição dos comportamentos humanos, considerados importantes pelo legislador, que lesam ou expõem a risco de lesão de valores considerados importantes pelo direito penal, transmudando estes valores em bens jurídicos penais. De acordo com cada momento histórico-social, o legislador prescreve, axiologicamente, os comportamentos que serão punidos, por intermédio de normas proibitivas ou mandamentais. Utiliza-se do tipo penal, que é o instrumento que garante ao Estado e aos cidadãos orientar-se de acordo com prescrição constante nos preceitos que o compõe.

Portanto, criminalizar com dureza os maus tratos de animais domésticos é um marco em nossa evolução civilizatória. Mas “esquecer” que a integridade corporal ou saúde humana, também deveria acompanhar essa modernidade normativa é imperdoável. Se afastarmos um pouco da hipocrisia e caminharmos rumo à realidade, perceberemos que o legislador não foi razoável em valorizar mais o bem estar animal em detrimento do humano. Ao menos que fosse dado um tratamento igualitário às duas condutas normativas que se quis proteger através do direito penal. Afinal, o cachorro é o melhor amigo do homem.

*Kathiúscia Mariano Silva é advogada e membro das comissões de direito civil e consumidor da OAB/GO