A Covid-19 e a relação entre os lojistas e os shopping centers: é possível renegociar os contratos de locação?

*Juliana Neves

Os acordos entre pessoas com a instituição de obrigações para ambas as partes remontam às civilizações mais antigas. Os romanos tinham uma ideia radical sobre os efeitos do inadimplemento contratual – a fonte da obligatio, que era vínculo pessoal da avença, acabava por subordinar a personalidade do devedor, tornando-o, por conseguinte, escravo de seu credor.

A evolução do mundo, com o esclarecimento da sociedade e a ascendência do capitalismo, consagrou o contrato, tornando-o instrumento de união e relação entre as nações.

Mais particularmente, entre os civis, era o contrato que regulava todos os marcos e fases da vida de um indivíduo – desde o casamento, adoção e até transferência de bens – e é assim até hoje.

Para o direito brasileiro, o contrato é conceituado de modo geral como um acordo havido entre duas ou mais pessoas para a constituição, ou extinção de uma relação jurídica de natureza patrimonial, constituindo-se objeto da manifestação de vontade das partes, resguardado pela segurança jurídica e contribuinte do equilíbrio das relações sociais.

Nas relações comerciais havidas entre os comerciantes e os locadores dos espaços comerciais, é celebrado o contrato de locação comercial, cujo objeto é o espaço comercial onde se quer estabelecer um negócio. Através da assinatura desse instrumento, o proprietário do espaço cede o uso de seu imóvel urbano para outrem para que seja instalado o comércio ou o serviço em troca de uma remuneração pecuniária.

O aluguel de espaços comerciais em Shopping Centers segue mais ou menos a mesma lógica, com algumas particularidades, devido às características específicas desses empreendimentos.

Para início de conversa, conceitua-se como Shopping Center um centro comercial planejado, subordinado a uma única administração, composto por espaços comerciais destinados à exploração comercial e à prestação de serviços, estes sujeitos às normas contratuais específicas e padronizadas destinadas à manutenção do equilíbrio da oferta e de sua funcionalidade, de modo a assegurar uma convivência integrada, com o pagamento em conformidade com o faturamento.

No contrato de locação havido entre o Shopping Center e o lojista, o primeiro, como locador do espaço comercial objeto da avença, obriga-se a ceder o referido espaço ao segundo, para que este possa instalar seu comércio, pagando, por ocasião disso, um aluguel.

Por óbvio, tal contrato firmado entre as partes possuem outras rubricas a serem pagas pelo lojista, de modo a contribuir para a mantença do empreendimento como um todo, e que não incluem somente o aluguel convencionado. Em verdade, para além da locação apenas do espaço comercial escolhido, o lojista, quando aluga uma loja em um centro comercial como um Shopping Center, passa a fazer parte de uma “universalidade comercial”, estruturada para oferecer ao consumidor uma infinidade de bens de consumo e serviços (“tenant mix”).

Assim, a atratividade do empreendimento – elaborada e estudada meticulosamente pela administração e segundo as mais modernas técnicas – também é remunerada pelos lojistas, que acabam se beneficiando delas ostensivamente.

Com o anúncio da pandemia pela Covid-19, e, com as medidas de distanciamento social, impostas pelos governos dos países mundo afora, o comércio como um todo se viu muito prejudicado, e essa situação envolveu os Shopping Centers fortemente.

Com as ruas vazias e o fechamento obrigatório do comércio não essencial, os centros comerciais perderam o apelo e a atratividade que antes possuíam, e essa situação acabou por afetar sobremaneira as suas relações com os lojistas.

Contratos de locação comercial firmados com rubricas de valores altos passaram a não ser mais viáveis para os locatários, haja vista terem perdido as suas fontes de faturamento, que eram suas lojas.

Lado outro, os locadores, diante da crise econômica que se instalou, precisam manter os empreendimentos hígidos, para que, tão logo o lockdown termine, possam retomar as suas atividades e recuperar o tempo (e o dinheiro) perdido.

Nesse “cabo de guerra”, fica difícil algum dos lados ceder, mas é necessário, até mesmo para a manutenção dos pactos firmados e a mitigação dos impactos econômicos futuros.

Desta feita, objetivando contribuir para a prevenção de perdas econômicas no presente e no futuro, devem as partes, com o objetivo de chegarem a um bom termo, se pautar pelos princípios contratuais da Boa Fé, utilizando-se da sinalização da onerosidade excessiva decorrente da pandemia para reafirmar sua relação contratual posterior (“pacta sunt servanda”).

O princípio da Boa Fé contratual guiará as partes por meio de um padrão de conduta, ou seja, ambos os contratantes deverão agir em parceria, respeitando os interesses legítimos e sendo leais um ao outro, sem qualquer tipo de abuso ou lesão, de modo a atingir a finalidade do contrato firmado e a realização do interesse de cada uma das partes. Tal preceito basilar auxilia as partes no controle de cláusulas e práticas abusivas dentro da renegociação.

Pelo princípio da Onerosidade Excessiva, as partes podem renegociar o contrato de locação, baseadas no acontecimento extraordinário e imprevisível que é a pandemia de Covid-19, e que, por ter modificado o cenário econômico mundial, refletiu diretamente sobre a relação contratual entabulada, onerando uma das partes. Por meio da invocação do princípio retromencionado, é possível revisar as condições pactuadas e criar outras que possam tornar o contrato exequível.

O princípio da Obrigatoriedade dos Contratos (“pacta sunt servanda”), enuncia, por fim, que as partes deverão cumprir com exatidão o que foi estipulado no contrato; assim, a renegociação entabulada tem a garantia de seu cumprimento.

O lojista tem direito ao pleito de renegociação dos contratos de locação firmados?

Como toda negociação baseada na vontade das partes, o contrato pode sim ser renegociado, de modo a refletir a situação das partes da maneira mais fidedigna possível. Destarte, o lojista, percebendo não poder honrar na integralidade com todos os compromissos firmados em contrato, poderá pleitear junto ao locador uma renegociação dos valores a serem pagos.

O locador, por seu turno, é obrigado a aceitar os termos pleiteados pelo lojista?

Como a própria relação contratual firmada é consensual, a renegociação de seus termos também o deve ser, cabendo ao locador aceitar se assim preferir.

E se uma das partes não aceitar o acordo?

Se a negativa para a renegociação do contrato partir do locador, o locatário poderá recorrer ao Poder Judiciário para a alteração das bases contratuais devido à pandemia, socorrendo-se dos princípios da Boa Fé Contratual (art. 422, CC/2002) e do direito a revisão contratual pela onerosidade excessiva (art. 478, CC/2002), evitando a inadimplência.

Por outro lado, se a negativa de renegociação do contrato partir do locatário e este inadimplir com os pagamentos devidos, poderá o locador ingressar com ação de despejo por inadimplemento (art. 5º, Lei n. 8.245/1991), visando retomar o espaço locado.

O ideal, nesse período difícil para todos, é a busca por soluções que contemplem ambas as partes da melhor forma, tendo o locador de Shopping Center a sensibilidade de tratar cada operação de per si, considerando o ramo de atividade e o tempo de recuperação do lojista. O locatário de espaço comercial de Shopping Center deve considerar sua capacidade de retomada e a possibilidade de cumprimento integral do contrato firmado no futuro.

Certo é que a situação pela qual o mundo passa é sem precedentes, e por isso, todos os envolvidos em relações contratuais, sobretudo as travadas entre os Shopping Centers e os lojistas, devem se valer do diálogo e do poder de negociação que possuem, para que haja equilíbrio, prudência e bom senso nas renegociações dos contratos de locação e estes atinjam seu objetivo precípuo, que é alavancar social e economicamente o país.

*Juliana Neves é advogada do MLA – Miranda Lima Advogados.