A cognição no processo de exclusão da OAB

Roberto Serra artigo*Roberto Serra 

A “exclusão” é a sanção ético-disciplinar mais drástica prevista no Estatuto da Advocacia e da OAB – EAOAB (Lei 8.906/1994), uma vez que “excluído” da OAB, o advogado não poderá mais exercer a profissão, estando inabilitado, portanto, para praticar qualquer atividade ligada à advocacia.

De acordo com o art. 38, incisos I e II, do EAOAB, em duas situações o advogado poderá ser “excluído”. Na primeira, quando for a ele aplicada, por três vezes, a pena de “suspensão”. Na segunda, quando forem cometidas as infrações previstas nos incisos XXVI a XXVII do art. 34 do EAOAB, quais sejam, “fazer falsa prova de qualquer dos requisitos para inscrição na OAB” (XXVI), “tornar-se moralmente inidôneo para o exercício da advocacia” (XXVII), e “praticar crime infamante” (XXVIII).

Na hipótese do inciso II do art. 38 da Lei n. 8.906/1994, não há controvérsia a respeito do módulo processual de conhecimento, cuja cognição será plena e exauriente, isto é, todas as alegações preliminares, prejudiciais, ou de mérito, além das provas produzidas, deverão ser consideradas pelos órgãos julgadores para formação dos juízos de valor acerca das questões suscitadas no processo.

A teor da Súmula n. 8/2019, do Conselho Pleno do Conselho Federal da OAB, deverá ser instaurado um procedimento para apurar a “exclusão” mediante a deflagração do devido processo legal. O procedimento para “excluir” um advogado seria bifásico, ou seja, submeterá, inicialmente, o processado, ao juízo de instrução e julgamento do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB, e, posteriormente, ao veredicto do Conselho Seccional, mediante manifestação favorável de 2/3 dos seus membros[1].

Contudo, se a cognição inerente ao inciso II do art. 38 do EAOAB será plena e exauriente, isso não ocorrerá com a hipótese do inciso I do art. 38 da Lei n. 8.906/1994.

Segundo entendimento majoritário do Conselho Federal da OAB, a cognição nesta hipótese deve ser limitada, face à restrição na sua amplitude imposta pela “coisa julgada administrativa”[2].

Vale dizer, no caso de “exclusão” pelas três condenações às sanções de “suspensão”, a cognição do processo instaurado ficaria restrita à análise da existência dos requisitos objetivos para a pretensão punitiva (erros ou equívocos na constatação do trânsito em julgado de três sanções de “suspensão”), não se admitindo no processo de “exclusão” qualquer pretensão ao reexame do mérito das condenações anteriores ou análise de questões relativas aos processos disciplinares já transitados em julgado[3].

Ocorre que a “coisa julgada administrativa” não tem o condão de limitar a cognição para a existência dos requisitos objetivos para a pretensão punitiva, pois a definitividade das decisões que impõem as penas de “suspensão” é relativa, na medida em que prevista a “revisão” (art. 73, § 5º, Lei 8.906/1994), a qual poderá, eventualmente, desconstitui-las[4].

Por outro lado, a extrema restrição cognitiva poderia subverter a efetividade do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF); isto é, os processos de “exclusão” na hipótese do inciso I do art. 38 do EAOAB poderiam vir a ser transformados naquilo que se denomina na linguagem popular de “cara-crachá”[5], isto é, bastaria, em regra, a certificação dessas três condenações com trânsito em julgado para impor, quase que automaticamente, a “pena capital”[6] da “exclusão”.

Nesse ponto, no julgamento do Processo n. 202002310, realizado em 31.3.2022, o Juiz Relator Áthyla Serra da Silva Maia, do Órgão Especial do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB – Secção de Goiás (TED/OAB-GO), destacou em seu voto que a simples constatação da existência de três condenações anteriores com a pena de “suspensão”, não tem o condão, por si só, de impor a condenação do advogado com a pena de exclusão. Caso contrário, a OAB se transformaria em uma “instituição robótica, voltada tão-somente a sempre excluir advogados sem apreciar o mínimo do contexto fático-jurídico particular que cada processo de exclusão evidencia”.

E arrematou: “quisesse o legislador que a Corte Deontológica fosse um automático ratificador de exclusões – sem a necessária cognição moderada sobre as particularidades que envolvem as três condenações suspensivas transitadas em julgado -, não teria previsto a instauração de processo de exclusão peculiar com todas as garantidas de defesa correspondentes”[7].

Naquele julgado, o TED/OAB-GO concluiu por rejeitar a exclusão de uma advogada que havia sido punida com três “suspensões” transitadas em julgado. De ofício, entendeu-se pela ocorrência de bis in idem em decorrência de dupla condenação pelo mesmo fato jurídico, razão pela qual a condenação exarada em um dos processos de “suspensão” deveria ser desconsiderada para efeito de ensejar o ato de exclusão dos quadros da OAB[8].

Também em julgamento realizado no Recurso n. 2003/99/SCA, onde um advogado havia sido excluído pela Seccional Paulista (OAB-SP) em decorrência de três condenações anteriores pela pena de “suspensão”, a 2ª Câmara do Conselho Federal da OAB constatou que, mesmo com o trânsito em julgado, em um daqueles processos teria ocorrido a “nulidade processual absoluta”, e em outro, a “prescrição intercorrente”. Diante dessas constatações, e restando apenas um processo com a pena de “suspensão”, o recurso foi provido para afastar a “exclusão” do advogado.

No mencionado julgado, o Conselho Federal da OAB firmou a seguinte tese: “o campo de defesa nos processos disciplinares instaurados com base no artigo 38, I, do Estatuto da OAB, visando, portanto a exclusão de advogado apenado com suspensão por três vezes, apesar de estreito e por isso mesmo, comporta implícito caráter revisional”[9].

Na oportunidade de seu voto prevalente, o Conselheiro Federal Ivan Szeligowski Ramos reforçou o posicionamento de que a cognição do art. 38, inciso I, da Lei n. 8.906/1994, alcança a “ínsita possibilidade revisional do contexto gerador do requisito contido e previsto naquela norma estatutária, como meio de ampla defesa, na medida da garantia constitucional e, paradoxalmente, da única defesa possível no caso”[10].

Os posicionamentos externados nos julgamentos do Processo n. 202002310 (Órgão Especial do TED-OAB/GO), e do Recurso n. 2003/99/SCA (2ª Câmara do CFOAB), refletem que a extrema limitação cognitiva nas hipóteses do art. 38, inciso I, da Lei n. 8.906/1994, acabam por violar o art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal, o qual assegura a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

É certo que a amplitude de defesa, como bem pontuado pela doutrina, não significa “defesa irrestrita e ilimitada”, mas sim “liberdade de atuação – sem restrições – dentro dos limites traçados e antepostos a tal direito, id est, liberdade de atuação dentro dos lindes em que a defesa há de se conter”[11].

Porém, indaga-se: não podendo questionar a validade e a eficácia das penas de “suspensão” aplicadas – com trânsito em julgado –, o que implica necessária e logicamente rever os respectivos processos, qual seria, efetivamente, a defesa possível ao advogado sujeito à pena de “exclusão”?

Ora, se é previsto e exigido um processo para a “exclusão”, cuja sanção seria aplicável somente por deliberação favorável de 2/3 dos membros do Conselho Seccional competente, à toda evidência que, em decorrência da restrição imposta pela “coisa julgada administrativa”, deverá ser assegurado o princípio da ampla defesa e do contraditório sob o escopo do art. 73, § 5º, da Lei n. 8.906/1994.

É possível, portanto, concluir, que a amplitude constitucional do exercício da defesa nos processos que envolvam o disposto no art. 38, inciso I, da Lei n. 8.906/1994, estariam balizados pelos contornos do art. 73, § 5º, da mencionada legislação, envolvendo, pois, a análise de eventual “erro de julgamento” ou “condenação baseada em falsa prova”.

Aliás, da leitura do art. 73, § 5º, da Lei n. 8.906/1994, verifica-se que a revisão do processo disciplinar, quando constatado “erro de julgamento” ou “condenação baseada em falsa prova”, pode ser realizada a qualquer tempo, e até mesmo de ofício.

A possibilidade dessa concepção revisional, ex officio, também pode ser observada, por exemplo, em relação aos magistrados e membros do Ministério Público, como dispõem o art. 103-B, § 4º, inciso V, e art. 130-A, § 2º, inciso IV, ambos da Constituição Federal, os quais estabelecem que o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público poderão, respectivamente, rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes, membros de tribunais, e do Ministério Público.

Do mesmo modo, o art. 174, da Lei n. 8.112/1990 – que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais –, consigna que “o processo disciplinar poderá ser revisto, a qualquer tempo, a pedido ou de ofício, quando se aduzirem fatos novos ou circunstâncias suscetíveis de justificar a inocência do punido ou a inadequação da penalidade aplicada”.

Não bastasse isso, nos termos das Súmulas n. 346 e 473 do Supremo Tribunal Federal (STF)[12], a administração (OAB) poderá a qualquer tempo “rever seus atos eivados de erro ou ilegalidade, sem que isso implique ofensa aos princípios da segurança jurídica, da confiança e da boa-fé objetiva, porque deles não se originam direitos”[13].

Assim, considerando o princípio da ampla defesa, e que a coisa julgada administrativa poderá ser desconstituída, inclusive, de ofício, pelas hipóteses previstas no § 5º do art. 73 da Lei n. 8.906/1994, não haveria razão jurídica para restringir a cognição do processo de “exclusão” a que alude o art. 38, inciso I, da Lei n. 8.906/1994 à simples análise da existência dos requisitos objetivos para a pretensão punitiva. O processo de “exclusão” deverá possuir, portanto, uma natureza revisional ou implícito caráter revisional.

Em remate, com base no que foi apresentado, é possível concluir que no processo de “exclusão”, do advogado, a cognição será plena e exauriente na hipótese do inciso II do art. 38 da Lei n. 8.906/1994.

E na ocorrência do inciso I do art. 38 do EAOAB, o processo deverá possuir a natureza revisional ou de implícito caráter revisional, isto é, apesar de limitada cognição, poderão ser objeto de argumentação defensiva e consideração dos órgãos julgadores, não apenas a análise da existência dos requisitos objetivos para a pretensão punitiva, mas também, os contornos do § 5º do art. 73 da Lei n. 8.906/1994 (“erro de julgamento” ou “condenação baseada em falsa prova”).

* Roberto Serra da Silva Maia: advogado criminalista, professor universitário, mestre em Direito e Conselheiro Federal pela OAB-GO

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[1] “PROCESSO DE EXCLUSÃO – INSTRUÇÃO E JULGAMENTO. Compete exclusivamente ao Pleno do Conselho Seccional o julgamento dos processos de exclusão, mediante a manifestação favorável de dois terços dos seus membros, após a necessária instrução e julgamento dos referidos processos perante o Tribunal de Ética e Disciplina (art. 38, parágrafo único, c/c art. 70, § 1º, ambos da Lei n. 8.906/94 – Estatuto da Advocacia e da OAB)” (Súmula n. 08/2019/COP).
[2] A denominada “coisa julgada administrativa” pode ser definida “como sendo a situação jurídica pela qual determinada decisão firmada pela Administração não mais pode ser modificada na via administrativa” (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 34. ed., São Paulo: Atlas, 2020 – versão eletrônica).
[3] Cf. 2ª Câmara do Conselho Federal da OAB, Recurso n. 16.0000.2021.000049-0/SCA-PTU, Rel. Cons. Fed. Marina Motta Benevides Gadelha, DEOAB, n. 886, de 1º.7.2022. No mesmo sentido, dentre outros: Recurso n. 49.0000.2020.009089-8/SCA, Recurso n. 16.0000.2021.000102-3/SCA-STU, Recurso n. 16.0000.2021.000023-0/SCA-PTU, Recurso n. 49.0000.2019.007115-7/SCA-STU, etc.
[4] Na esfera penal, cuja compreensão deve ser aplicada subsidiariamente ao processo disciplinar (art. 68, EAOAB), “não há, em se tratando de sentença penal condenatória transitada em julgado, coisa soberanamente julgada. Será sempre coisa relativamente julgada, na medida em que se admite revisão criminal” (RANGEL, Paulo. A coisa julgada no processo penal brasileiro como instrumento de garantia. São Paulo: Atlas, 2002, p. 225).
[5] Esse bordão (“cara-crachá”) foi muito utilizado por um personagem humorístico (Paulo Silvino) em um programa televisivo no início dos anos 2000. Nesse programa, o personagem (porteiro) dizia que sua função se limitava a exigir, como única forma de ingresso no estabelecimento, que a foto que aparecia no crachá dos visitantes correspondesse ao mesmo sujeito que a ele se apresentava.
[6] Expressão empregada pelo Conselheiro Federal Ivan Szeligowski Ramos em seu voto no julgamento do Recurso n. 2003/99/SCA.
[7] Trechos do voto do Juiz Relator Áthyla Serra da Silva Maia – Órgão Especial do TED – OAB/GO –, no julgamento do Proc. 202002310, realizado em 31.3.2022.
[8] Ementa: “PROCESSO DE EXCLUSÃO DE ADVOGADA DOS QUADROS DA OAB. PRESCRIÇÃO NÃO RECONHECIDA. POSSOBILIDADE MODERADA DE ANÁLISE PELO ÓRGÃO ESPECIAL DAS PARTICULARIDADES QUE ENVOLVERAM OS ATOS CONDENATÓRIOS, DESDE DIGAM RESPEITO À MATÉRIAS DE ORDEM PÚBLICA. BIS IN IDEM RECONHECIDO EX OFFICIO. INPROCEDÊNCIA DA EXCLUSÃO. 1. O escólio jurisprudencial do CFOAB vem adotando a intelecção de que em se tratando de três condenações de sobrestamento do exercício profissional, o termo a quo da prescrição/decadência quanto ao desiderato de se impor o desligamento compulsório do advocatus, conta-se a partir do trânsito em julgado da terceira condenação disciplinar de suspensão. 2. Forte nessas colações, dado que entre o trânsito em julgado da terceira condenação disciplinar da representada e a instauração do processo de exclusão decorreram menos de cinco anos, não há prescrição ou decadência a ser declarada. 3. A exclusão de advogado dos quadros da OAB, na forma do artigo 38, inciso I, da Lei nº. 8.906/94, exige a existência de 03 (três) condenações pretéritas de suspensão do exercício profissional transitadas em julgado, não se admitindo, de ordinário, o reexame do mérito das referidas decisões anteriores face à res iudicata administrativa, a menos que se trate de matéria de ordem pública que possa acarretar o alijamento ilegítimo ou injusto da parte representada, a exemplo do bis in idem. 4. Afinal, quisesse o legislador que a Corte Deontológica fosse um automático ratificador de exclusões, sem a necessária cognição moderada das particularidades que envolveram as três condenações suspensivas transitadas em julgado, não teria previsto a instauração de processo de exclusão específico com todas as garantidas de defesa correspondentes. 5. O mero cumprimento de quaisquer das suspensões não enseja o automático ofuscamento dos antecedentes disciplinares do acusado ou o resgate da sua primariedade, haja vista que apenas os procedimentos de ‘revisão’ e ‘reabilitação’ detêm a legitimidade jurídica adequada para tanto, como tem se posicionado o CFAOB. 6. Desatendidos à integralidade dos requisitos impressos no art. 38, inciso I, do Estatuto da Advocacia e da OAB, a exclusão profissional da representada deve ser rejeitada” (Órgão Especial do TED – OAB/GO –, Proc. 202002310, Rel. Juiz Áthyla Serra da Silva Maia, julgado em 31.3.2022).
[9] Trecho da ementa da 2ª Câmara do Conselho Federal da OAB, Rec. 2003/99/SCA-SP, Ementa 23/2000, Rel. Cons. Fed. Ivan Szeligowski Ramos, DJ de 20.3.2000, p. 100, S1.[10] Trechos do voto do Cons. Fed. Ivan Szeligowski Ramos – 2ª Câmara do Conselho Federal da OAB, Rec.  2003/99/SCA-SP, Ementa 23/2000, DJ de 20.3.2000, p. 100, S1.
[11] PEDROSO, Fernando de Almeida. Processo penal. O direito de defesa: repercussão, amplitude e limites. 3. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 377.
[12] Súmula 346/STF: “A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos”.
Súmula 473/STF: “A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”.
[13] STF, 2ª Turma, RE 1271500 AgR/RJ, Rel. Min. Edson Fachin, DJe 52, de 18.3.2021.