A ausência de regulamentação das gorjetas no Brasil e o papel das entidades sindicais

As regulamentações sobre gorjetas foram revogadas em pouco tempo após sua entrada em vigor, o que gerou grande insegurança jurídica às empresas e empregados do setor de bares, restaurantes e hotéis. A temática é apresentada nesta terça-feira (8) pelo advogado Gustavo Afonso Oliveira. Ele é sócio do escritório Afonso, Lourenço e Ulhôa Advogados. Diretor Científico do Instituto Goiano de Direito de Trabalho e professor de Direito e Processo do Trabalho da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO).

Leia a íntegra do texto:

Gustavo Afonso Oliveira

A gorjeta é uma prática comum no Brasil, especialmente nos bares, restaurantes e setor hoteleiro, e é utilizada como uma forma tradicional de incentivar o esforço do trabalhador, um agradecimento pelo atendimento satisfatório. Apesar de ser um valor pago por um terceiro estranho à relação de trabalho, não diretamente pelo empregador, gera várias repercussões financeiras nos contratos de trabalho dos empregados que a recebem, independentemente de sua inclusão ou não na nota de serviços.

A despeito da importância do tema, tanto no aspecto cultural, quanto no aspecto jurídico, desde 2017 a legislação que rege o tema sofreu sucessivas alterações, o que gerou – e tem gerado – grande insegurança jurídica às empresas, que muitas vezes arrecadam e distribuem os valores, e empregados, que dependem dessa verba para sobreviver.

A reforma trabalhista de 2017 (Lei 13.467/2017) completou três anos no último dia 11 de novembro de 2019. Foram muitas mudanças, alguns avanços e retrocessos, o que é natural para uma alteração tão significativa da legislação, inclusive no que diz respeito ao tema das gorjetas.

Apenas oito meses antes, em 13 de março de 2017,  havia sido promulgada a Lei 13.419/2017, a chamada Lei das Gorjetas. A legislação atendeu a uma demanda histórica do setor de bares, restaurantes e similares, e foi aprovada após intenso e longo debate no Congresso Nacional, que durou mais de uma década. A referida Lei alterou o artigo 457 da CLT e incluiu diversos parágrafos ao texto celetista, de modo a regulamentar essa temática tão pertinente e relevante.

O então novo artigo 457 da CLT, alterado pela Lei das Gorjetas, dispunha, por exemplo, sobre a possibilidade de a empresa reter parte dos valores arrecadados a título de gorjetas, com percentuais diversos para optantes do Simples Nacional e regime de tributação real ou presumido. Também tratava sobre a possibilidade de os próprios empregados definirem, em assembleia geral de trabalhadores, sobre os percentuais de rateio e distribuição da verba paga por terceiros. Enfim, naquele momento a norma atendeu aos anseios do setor.

O fato é que a Lei da Reforma Trabalhista de 2017, dentre suas diversas alterações, deu nova redação ao artigo 457 da CLT, para dispor e enfocar o tema das parcelas que possuem (ou não) natureza salarial, a exemplo das premiações, auxílio alimentação, diárias para viagem, dentre outras, o que acabou por revogar os parágrafos relativos às gorjetas, acrescentados há tão pouco tempo. O erro colocou as gorjetas numa espécie de limbo jurídico, novamente sem uma regulamentação mínima, apenas com a disposição geral de que os seus valores integram a remuneração dos empregados. A falha legislativa foi reconhecida, inclusive, na propositura de nova legislação, a exemplo da ementa do PL 10.071/2018, de autoria do Dep. Efraim Filho, ainda em trâmite no Congresso Nacional.

PL 10.071/2018: Ementa – Altera o Art. 457 do decreto-lei n.º 5.452, de 1º de maio de 1943 (CLT) para reeditar a Lei 13.419 de 2017 (Lei da Gorjeta) revogada por erro de técnica legislativa com a publicação da Lei 13.467 de 2017 (Reforma Trabalhista).

A seguir, já no ano de 2019, o Governo Federal editou a Medida Provisória 905, apelidada de MP do Contrato de Trabalho Verde e Amarelo. Dentre suas alterações, houve a inclusão do artigo 457-A à CLT, com versão resumida da regulamentação revogada pela Lei da Reforma Trabalhista, prevendo alguns aspectos importantes para a temática. O fato é que a Medida Provisória foi revogada pelo Congresso Nacional em 18 de agosto de 2020, tendo permanecido vigente desde 11 de novembro de 2019 (exatamente dois anos depois da entrada em vigor da Lei 13.467). Mais um vácuo jurídico a administrar.

É importante lembrar que a Súmula 354 do TST dispõe sobre os impactos das gorjetas na remuneração dos empregados, em clara distinção entre remuneração e salário. Nela, o TST definiu que as gorjetas, cobradas pelo empregador na nota de serviço ou oferecidas espontaneamente pelos clientes, integram a remuneração do empregado, não servindo de base de cálculo para as parcelas de aviso-prévio, adicional noturno, horas extras e repouso semanal remunerado. Na prática, as gorjetas integram a remuneração para refletir em férias, décimo salário, FGTS e contribuições previdenciárias.

Apesar disso, é bom lembrar que a empresa é uma mera arrecadadora da quantia, apenas recebe e repassa os valores das gorjetas aos empregados, e ainda fica com os impactos financeiros gerados nos contratos de trabalho. As repercussões são grandes, e a ausência de regulamentação gera, por vezes, um completo desestimulo à cobrança das gorjetas, ou até à sua proibição como política empresarial. Isto, via de consequência, afeta o recebimento mensal do empregado, que se vê empobrecido ao final do mês.

O fato é que a CLT atual, por um lapso legislativo e após sucessivas alterações, continua a prever apenas o que sempre previu primitivamente: as gorjetas integram a remuneração do empregado e, para esse efeito, são considerados tanto os valores cobrados na nota de serviço quanto os espontaneamente concedidos pelos clientes, já que se trata de pagamento facultativo e adicional à conta final.

Ante a ausência de regulamentação e a grande necessidade do setor, a solução atual passa necessariamente pelas entidades sindicais, especialmente porque o art. 611-A da CLT, que lista as hipóteses possíveis de negociação coletiva a prevalecer sobre a lei, aloca as gorjetas em seu inciso IX. Os atores sociais foram chamados a negociar e regulamentar a questão, daí a importância de uma construção conjunta, que compreenda a relevância do tema para o setor, tanto para os empregados quanto para os empregadores.

Tradição ou não, a regulamentação das gorjetas gera maior segurança jurídica para estabelecimentos comerciais e possibilidades de prever ganhos e gastos para os empregados. Na atual circunstância, é pouco provável que uma nova MP seja divulgada para corrigir o texto. Enquanto o setor clama por regulamentação, caberá às negociações coletivas disporem sobre o tema, o que também evidencia a necessidade de construir um movimento sindical forte, para discussão de temas tão relevantes para a vida de trabalhadores e empresários.