Cabe apreensão da CNH do devedor numa execução trabalhista?

Cabe apreensão da CNH do devedor numa execução trabalhista? Quem responde esse questionamento na coluna Rota Trabalhista desta quarta-feira (16) é Fabiano Coelho, titular da Vara do Trabalho de Formosa (GO). Magistrado há 22 anos, ele já foi coordenador nacional do Processo Judicial Eletrônico na Justiça do Trabalho (2016-2018). Mestre em direito pela PDCGO. Instrutor do treinamento Seja um Expert em Recurso de Revista Agora!

Leia a íntegra do texto abaixo:

Fabiano Coelho

O processo moderno exige que seja entregue ao cidadão a prestação jurisdicional efetiva e que observe uma duração razoável. Assim, o inciso IV do art. 139 do CPC de 2015 inseriu entre os poderes do juiz na direção de um processo, a possibilidade de “determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária”.

A partir deste dispositivo, a criatividade tem sido utilizada sem limites, na busca de medida de incômodo ao devedor, para forçar o cumprimento da obrigação constante do título executivo judicial: bloqueio de cartão de crédito; proibição de circulação de veículo do devedor; indisponibilidade de bens; suspensão de serviços de TV a cabo e internet; bloqueio da carteira nacional de habilitação. O bloqueio de CNH é o objeto deste comentário.

O Código de Processo Civil trouxe uma transformação interessante do processo: abandonou a ideia de celeridade para prestigiar a duração razoável. Isso ocorre porque, sem cuidar da mais rápida possível entrega da prestação jurisdicional, a celeridade não pode atropelar as garantias constitucionais de contraditório, ampla defesa e devido processo legal. Não bastasse, o processo moderno não convive com atos de vingança ou de imposição de constrangimento a qualquer litigante, em especial quando tais atos são patrocinados pelo Estado-juiz. A dignidade da pessoa humana é o ponto de partida e de chegada do ordenamento jurídico, razão pela qual as medidas de incômodo do devedor devem ser utilizadas com razoabilidade e com os olhos voltados para os direitos humanos e às garantias constitucionais do processo.

Feitas as considerações preliminares sobre o tema, é preciso fixar que a suspensão de CNH não pode ser adotada como medida indiscriminada. Assim, o fato de não serem encontrados bens do devedor, capazes de garantir a execução, não se constitui em motivo válido para a adoção da suspensão ou bloqueio de renovação da CNH. A execução deve ser dirigida contra o patrimônio do devedor e, assim, suspender a CNH apenas porque a pessoa não tem dinheiro ou patrimônio para garantir a dívida revela um capricho, uma verdadeira afronta ao princípio da dignidade do indivíduo. E é preciso ter a clara consciência de que a suspensão da CNH do devedor insolvente não resolverá o processo, e, além da humilhação imposta ao devedor, não fará aparecer o dinheiro.

Por outro lado, a suspensão da carteira nacional de habilitação não é razoável quando o devedor precisa dirigir, em razão de compromissos profissionais ou por dever humanitário. Assim, o motorista profissional que precisa dirigir tem a CNH como ferramenta de trabalho e, assim, não pode sofrer restrição ao seu direito de dirigir. Deve ser pontuado que, nesta hipótese, se o devedor não tem dinheiro para pagar a dívida e sofre a suspensão da CNH, ficará sem fonte de sustento, agravando ainda mais a sua dificuldade em honrar as obrigações pecuniárias exigidas em juízo. É o caso do advogado também porque, ainda que a condução de automóvel não seja ato relacionado à advocacia, é evidente que a realidade da profissão, mesmo com mecanismos de prática de atos processuais por meios telemáticos, há diligências, reuniões e outras demandas que exigem que o advogado tenha a CNH e, assim, penso que o bloqueio da CNH de advogados, presume-se ilegal. Da mesma forma, demonstrado que o executado desenvolve um trabalho social, conduzindo pessoas enfermas a unidades hospitalares, a CNH não deverá ser suspensa, eis que haverá a demonstração de que pessoas vulneráveis dependem da condução de um automóvel pelo devedor.

Numa linha garantista e humanitária, a SDI-2 do TST enfrentou recentemente essa questão pertinente ao bloqueio da CNH do devedor. Era um recurso ordinário contra o acórdão do TRT que negou a segurança a um devedor que alegou que o bloqueio da CNH afrontou direito líquido e certo. Eis a emenda, da relatoria da Min. MARIA HELENA MALLMANN:

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ATO COATOR QUE DETERMINA A APREENSÃO DA CARTEIRA NACIONAL DE HABILITAÇÃO COMO PROVIDÊNCIA EXECUTIVA. APLICAÇÃO DO ART. 139, IV, DO CPC/15. PODER GERAL DE EFETIVAÇÃO DA TUTELA JURISDICIONAL. SUBSIDIARIEDADE E EXCEPCIONALIDADE DA MEDIDA. INEXISTÊNCIA DE ELEMENTOS NO CASO CONCRETO QUE COMPROVEM UTILIDADE E ADEQUAÇÃO DA MEDIDA. DIREITO LÍQUIDO E CERTO. SEGURANÇA CONCEDIDA. 1. Trata-se de mandado de segurança impetrado contra ato jurisdicional proferido na fase de cumprimento de sentença em que se ordenou a suspensão da CNH dos impetrantes, uma vez que “foram realizadas várias tentativas de localização de bens dos executados, sem êxito”. 2. É admissível a imposição de medidas aflitivas na execução de pagar quantia certa, contanto que seja demonstrada a sua utilidade para a satisfação do crédito exequendo. A aplicação do art. 139, IV, do CPC/15 será balizada pela observância dos postulados da proporcionalidade e razoabilidade, do contraditório e da ampla defesa, e da adequada fundamentação das decisões judiciais. 3. No caso concreto, a apreensão da Carteira Nacional de Habilitação não se revela medida útil para a satisfação do crédito alimentar, porque decorreu apenas da constatação da autoridade coatora de que não há bens do devedor capazes de suportar a execução. 4. Com efeito, não há elementos que indiquem a oposição injustificada dos devedores ao cumprimento da sentença, tais como prova da ocultação de bens ou gozo de estilo de vida incompatível com a dívida objeto da execução. 5. A mera insolvência, em si mesma, não enseja a automática adoção de medidas limitadoras da liberdade individual do devedor, porquanto a execução civil não possui o caráter punitivo verificado na execução penal. Mesmo sob a égide do CPC de 2015, é sempre patrimonial a responsabilidade do devedor (art. 789 do CPC de 2015). Precedentes do e. Superior Tribunal de Justiça. 6. Há, portanto, direito líquido e certo a ser protegido. Recurso ordinário de que se conhece e a que se dá provimento para conceder a segurança” (RO-1615-35.2018.5.05.0000, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, Relatora Ministra Maria Helena Mallmann, DEJT 04/12/2020).

Para melhor compreensão do tema, vou isolar os fundamentos constantes da ementa, com comentários sobre o que foi ocorreu:

  1. a) o processo era um mandado de segurança, com tramitação original do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região. A autoridade coatora é o juiz que determinou a apreensão da CNH. O adversário na reclamação trabalhista será indicado como terceiro interessado, para que possa exercer o contraditório, inclusive sustentando a legalidade da medida que reverte em seu favor.
  2. b) o TRT negou a segurança ao devedor que questionou a legalidade do bloqueio de sua CNH e este apresentou recurso ordinário. O questionamento de ato de juiz de primeira instância, pela via do mandado de segurança, será feito mediante ajuizamento do MS no TRT. O relator pode decidir monocraticamente, situação que desafio a interposição de agravo interno. A decisão do Colegiado, por sua vez, sendo definitiva comporta recurso ordinário, a ser julgado pela SDI-2.
  3. c) tratamento da apreensão da CNH como excepcional a exigir elementos que comprovem a utilidade e adequação da medida. É o que defendemos no presente texto, de que, medidas como a apreensão de CNH exigiriam que a situação fosse excepcional para que seja tida como razoável e proporcional.
  4. d) o bloqueio da CNH foi feito porque “foram realizadas várias tentativas de localização de bens dos executados, sem êxito”. A não localização de bens por conduta maliciosa do executado até pode exigir medidas enérgicas por parte do juízo. Porém, não cabe medidas aflitivas, que tenham o caráter de punição, só porque o devedor não ostenta bens suficientes para cumprir a obrigação.
  5. e) a imposição de medidas aflitivas exige a demonstração de sua utilidade para a satisfação do crédito. A medida aflitiva pode colaborar para a satisfação do crédito quando, comprovadamente, o devedor estiver ocultando patrimônio ou praticando qualquer conduta com propósito nítido de inviabilizar o cumprimento da sentença.
  6. f) a apreensão da CNH porque não há bens do devedor capazes de suportar a execução não é razoável. A apreensão de CNH é uma restrição à liberdade individual do devedor. Por isso, como assume caráter punitivo, deve ser aplicado restritivamente e apenas nos casos que for necessário coibir alguma conduta maliciosa do devedor.
  7. g) não há nos autos elementos que indiquem a oposição injustificada dos devedores ao cumprimento da sentença, tais como prova da ocultação de bens ou gozo de estilo de vida incompatível com a dívida objeto da execução. A ocultação de bens deve ser coibida energicamente por se tratar de uma verdadeira deslealdade processual. Já o “gozo de estilo de vida incompatível com a dívida”. Essa questão é sensível por termos que separar um estilo de vida custeado pelo devedor e incompatível com a dívida, passível de punição, daquele devedor que posta em redes sociais presença em festas e outros eventos sociais, para os quais não contribuiu financeiramente.
  8. h) a mera insolvência, em si mesma, não enseja a automática adoção de medidas limitadoras da liberdade individual do devedor, porquanto a execução civil não possui o caráter punitivo verificado na execução penal. Como disse, de nada adianta a adoção de medidas restritivas ao direito de liberdade do devedor, se este não dispõe de patrimônio e, assim, a medida será ineficaz, pois não terá potencial de fazer o dinheiro aparecer nos autos.
  9. i) a responsabilidade do devedor é sempre patrimonial (art. 789 do CPC de 2015). A adoção de medidas aflitivas foge ao escopo da moderna jurisdição executiva, em que o devedor responde com o seu patrimônio, e não com o sacrifício de direitos individuais.
  10. j) foi concedida a segurança. Com a segurança, o devedor fica reabilitado para dirigir, fazendo cessar o ato tido por arbitrário.

Em síntese, a suspensão da CNH é medida restritiva da liberdade e do exercício de direito do cidadão. Por isso, por sua excepcionalidade, só poderá ser utilizada nas hipóteses em que realmente fique demonstrado que o devedor está maliciosamente ocultando o seu patrimônio, impedindo de forma injustificada o cumprimento da sentença. Deste modo, a insistência do juiz em impor a suspensão da CNH na hipótese em que o devedor não pagou a execução por não ter dinheiro ou bens para tanto, implica em violação a direito líquido e certo de locomoção e de dirigir automóveis, autorizando o uso de mandado de segurança para fazer cessar a violência.