Chegou ao Supremo Tribunal Federal, órgão máximo de julgamentos de processos judiciais do Brasil que discutem questões constitucionais, ação que discute um dos temas atuais mais intrigantes entre questões de Direito de Família: se a lei que obriga pessoas de mais de 70 anos a se casarem em regime de separação de bens é constitucional. O processo pode ter seu julgamento iniciado ainda nesse trimestre, sendo reconhecida já pelo Relator, Ministro Roberto Barroso, a repercussão geral do caso.
A regra dos septuagenários foi instituída no ano 2010, alterando o Código Civil de 2002, para prevenir o que se convencionou chamar de “golpe do baú” — expressão pejorativa, de cunho machista, usada para definir quando uma mulher se casa com um homem mais velho com o intuito de ficar com sua herança. A ideia era, para além de supostamente proteger o patrimônio da pessoa idosa, também preservar a herança dos filhos, mas a norma passou a ser questionada e foi parar na corte.
O caso que chegou ao STF e poderá ter reconhecida sua repercussão geral — ou seja, indicar decisões futuras sobre episódios semelhantes— ocorreu na cidade de Bauru, no interior de São Paulo. Trata-se de um casal composto por um homem e uma mulher que mantiveram uma união estável de 2002 a 2014, ano em que ele morreu. À época, a primeira instância reconheceu a mulher como herdeira, mas ela acabou perdendo o processo quando os filhos do marido recorreram ao Tribunal de Justiça de São Paulo. Lá aplicou-se o regime de separação de bens, uma vez que ele já tinha mais de 70 anos quando a relação foi selada. Na peregrinação por Justiça, o caso foi parar no Superior Tribunal de Justiça e, agora, no STF.
Segundo a advogada Marilia Golfieri Angella, sócia-fundadora do Marília Golfieri Angella – Advocacia Familiar e Social, especialista em Direito de Família, Gênero e Infância e Juventude, mestranda em Processo Civil pela Faculdade de Direito da USP e professora colaboradora do FGV Law, a discussão extrapola a questão da proteção do patrimônio. Para ela, esse debate precisa ser feito do ponto vista da autonomia da pessoa idosa.
O próprio Estatuto da Pessoa Idosa foi alterado em julho deste ano para a substituição as palavras “idoso” ou “idosos” por “pessoa idosa” ou “pessoas idosas”, respectivamente. “As recentes discussões a respeito deste caso em julgamento no STF caminham no mesmo sentido daquelas destinadas ao estudo da dignidade humana da pessoa idosa e da necessidade de garantia de maior respeito e autonomia dessa parcela da população”, afirma.
“A discussão sobre a alteração do termo ‘idoso’ foi iniciada a partir do Projeto de Lei 72/2018 tendo em vista a necessidade de adequação da terminologia em respeito à luta das pessoas idosas, assim como ocorre com as pessoas com deficiência, que também vêm encontrando respaldo na legislação para serem mais valorizadas a partir de um tratamento adequado, sem preconceitos e rotulações, promovendo inclusão social e criação de políticas públicas protetivas, também destinadas a uma maior participação comunitária”, comenta Marilia Golfieri Angella.
De acordo com a especialista no tema, quando a lei presume, de forma indistinta, a absoluta incapacidade das pessoas maiores de 70 para decidir sobre o regime patrimonial aplicável às suas uniões familiares, sejam elas através do casamento formal ou da mera união estável, “a regra afronta diretamente a autonomia destas pessoas, ocorrendo um esvaziamento da capacidade natural de decidir sobre os atos mais banais da vida civil supostamente em prol da proteção patrimonial”.
“Em verdade, a norma que buscava promover a proteção patrimonial da pessoa, quiçá de uma possível herança, age em desfavor da autonomia e do respeito da vontade da pessoa idosa, ainda mais atualmente, com o avanço dos pactos sociais e da medicina, que promovem aumento da expectativa de vida e fazendo com que pessoas com setenta anos ainda estejam completamente ativas e plenamente conscientes de seus atos”, analisa.
Como ocorre no caso posto em julgamento pelo STF, o casal de idosos viveu por mais de 10 anos junto e, a partir do momento da morte do marido, seus filhos começaram a discussão contra a companheira com finalidade puramente patrimonial. “O que acaba acontecendo é justamente como no caso do STF: a companheira cuida no final da vida, muitas vezes assumindo importante função de cuidado e, após a morte, os filhos deixam-na sem nada”, completa.
Sobre a necessidade de se observar o caso também por um viés de gênero, Marília explica que “há desrespeito não só ao que o pai provavelmente desejaria em vida, que seria a proteção de sua companheira, mas possível desrespeito à dignidade desta mulher, que sofre o luto e enfrenta uma nova disputa contra a família. Há discriminação etária, ante o desrespeito da vontade do pai, e de gênero, a qual precisa ser analisada adequadamente pela sociedade, pelo Legislativo e pelo Poder Judiciário a partir da ótica do novo Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, lançado pelo CNJ recentemente”.