Os 10 axiomas do garantismo penal

Como achei didática a forma com que o amigo Rafael de Deus Garcia apresenta roteiro de leitura da obra “Direito e Razão: teoria do garantismo penal”, resolvi compartilhá-la com os leitores da coluna Defesa Criminal. Espero seja proveitosa e suficientemente instigante a ponto de conduzir a advocacia criminal ao estudo aprofundado do tema.

O que é o garantismo penal?

Segundo o autor da proposta garantista, trata-se o modelo garantista, cognitivo ou de legalidade estrita “de um modelo-limite, apenas tendencialmente e jamais perfeitamente satisfatório, marcado pela adoção de dez axiomas ou princípios axiológicos fundamentais, não deriváveis entre si, expressados, seguindo uma tradição escolástica, com outras tantas máximas latinas”.

O que é axioma?

São proposições tomadas por verdadeiras, auto evidentes. No sistema garantista (SG), são premissas, pontos de partida que orientam todo o conjunto de argumentos e conclusões da teoria.

Para que servem os axiomas?

Sua intenção é criar uma teoria quase que fechada, com alta coerência interna. Para se questionar alguma conclusão ou argumento trazido pelo autor, é necessário questionar seus axiomas, pois dentro da base teórica que ele cria, é muito difícil apontar alguma incoerência lógica ou uma conclusão equivocada.

E se você discorda de algum ponto que ele levanta ao longo do livro, muito provavelmente é porque você iria discordar do próprio sentido de algum dos axiomas.

Por que esses axiomas?

Ferrajoli não elege esses axiomas aleatoriamente, mas a partir de uma longa tradição político-liberal e dentro de um paradigma juspositivista.

Como são dispostos?

Os postulados garantistas se dispõem na forma de um quiasma, um X. Repare como o termo final de um axioma é retomado para iniciar o seguinte. Um axioma não pode ser interpretado sem seu antecessor. Todo axioma deixa uma pergunta que é respondida pelo próximo. Assim, o último axioma guarda consigo toda a carga de sentido, ou conteúdo, dos anteriores.

São 10 axiomas, sendo que os 6 primeiros se referem às condições penais, e os 4 últimos às condições processuais. Dos 6 primeiros, os axiomas A1, A2 e A3 se referem à teoria da pena, enquanto os A4, A5 e A6 se referem à teoria do delito. São eles:

Não há pena sem crime (Nulla poena sine crimine) 

Princípio da retributividade ou da consequencialidade da pena em relação ao delito. Ferrajoli faz remissão a Ulpiano e Feuerbach com o brocardo latino: Não pode haver punição sem fraude (crime). Sem a fraude, a punição é uma fraude. Mas o que define o crime? A lei.

Não há crime sem lei (Nullum crimen sine lege) 

Princípio da legalidade, no sentido lato e no sentido estrito. Só a lei pode prever crimes, não podendo eles estarem definidos em outro lugar. Mas qualquer conduta pode se tornar crime? Não. Deve haver a necessidade da lei penal.

Não há lei penal sem necessidade (Nulla lex (poenalis) sine necessitate) 

Princípio da necessidade ou da economia do direito penal. O direito não pode incriminar condutas irrelevantes ou desnecessárias, devendo ser efetivamente considerado como ultima ratio. Mas que critério podemos usar para dizer que há necessidade de lei penal? O dano, a lesão a um bem jurídico.

Não há necessidade [da lei penal] sem ofensa [a bem jurídico] (Nulla necessitas sine injuria) 

Princípio da lesividade ou ofensividade do evento. O direito penal não pode incriminar condutas que não ofendam um bem jurídico. E não basta qualquer lesão, sendo necessária uma lesão significativa. Mas quando podemos dizer que houve ofensa a um bem jurídico? Deve haver, no mínimo, a exterioridade da ação, materialidade da conduta.

Não há ofensa a bem jurídico sem ação (Nulla injuria sine actione) 

Princípio da materialidade ou da exterioridade da ação. Ferrajoli o tempo todo se refere a ação e omissão, ok? Na verdade, aqui há a vedação de se incriminar o pensamento, os atos preparatórios, a mera intenção. Mais importante é a vedação da incriminação de personalidade. O crime deve se referir a uma conduta, não a um agente ou um traço de sua personalidade, ideologia ou pensamento. Mas basta a ação? É precisão também responsabilidade, o dolo ou a culpa.

Não há ação sem culpa (Nulla actio sine culpa) 

Princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal. Veda-se a responsabilidade penal objetiva. É preciso que haja intenção do agente. Aqui se entra na questão da responsabilidade penal. E como podemos aferir a culpa de alguém? Pelo processo.

Não há culpa sem processo (Nulla culpa sine judicio) 

Princípio da jurisdicionalidade no sentido lato ou estrito. O único meio adequado para se aferir a culpa de alguém é pelo processo. Mas qualquer processo? Claro que não, mas um processo que tenha acusação.

Não há processo sem acusação (Nulla judicium sine accusatione) 

Princípio acusatório ou da separação entre o juiz e a acusação. Isso significa que juiz e acusador não podem ser a mesma pessoa no processo. Há clara separação de funções. Quem julga não acusa e quem acusa não julga. Há aqui a principal distinção entre os modelos acusatório e inquisitório. Basta acusar? Não, tem que provar.

Não há acusação sem prova (Nulla accusatio sine probatione) 

Princípio do ônus da prova ou da verificação. Cabe à acusação provar o alegado. Sem prova não pode haver aplicação de pena. Mas de nada vale a prova sem uma defesa.

Não há prova sem defesa (Nulla probatio sine defensione) 

Princípio do contraditório ou da defesa ou da falseabilidade. É a defesa que torna o processo válido. Só se a defesa puder se manifestar sobre uma prova, tendo real possibilidade de contraprovar o alegado, que ela poderá ser utilizada no processo. Para o sistema garantista, não basta o mero contraditório, mas a real possibilidade de contraprovar, de falsear a acusação.