A exploração das imagens de investigados: publicidade ostensiva

Roberto Serra da Silva Maia*

Toda investigação criminal, por se tratar de procedimento de natureza administrativa, inquisitiva e preliminar à ação penal, deveria ser sigilosa, não submetida, pois, à publicidade que rege um processo judicial.  Mas se a regra deveria ser a preservação do sigilo, não se pode negar que há situações em que a publicidade da investigação pode vir ao encontro do interesse público, como naqueles casos em que a divulgação do “retrato falado” ou imagem do investigado seria importante para obtenção de sua identificação ou de dados relativos à sua própria localização.

No entanto, o que se percebe é a existência de uma publicidade ostensiva de investigados.

Recentemente, a título de exemplo, uma pessoa suspeita de matar e estuprar determinada adolescente foi presa, e com a investigação sigilosa “vazada”, teve sua imagem difundida, e a casa invadida e incendiada por populares revoltados pelo crime. Posteriormente, isentando a participação do investigado anterior, a polícia apontou para outro suspeito, o qual também teve a imagem publicizada[1].

Em outro recente caso noticiado, um conhecido estabelecimento comercial (confeitaria) foi inicialmente exposto pela morte de duas pessoas por intoxicação alimentar. Mais adiante, as investigações exculparam a empresa, e direcionaram a autoria do crime para uma mulher, cuja imagem e trechos do Inquérito Policial foram igualmente publicizados e sensacionalizados pela mídia[2].

Também alguns dias atrás, um pastor evangélico investigado por “importunação sexual”, teve seu nome e imagem expostos na imprensa com a seguinte chamada: “Veja quem é o pastor de Goiânia investigado por importunação sexual que foi para o Grammy Latino este ano”[3]. Em outra investigação de estupro, a manchete foi a seguinte: “Veja quem é o suplente de vereador investigado por estupro contra ao menos cinco garotas de programa”[4].

Impossível também esquecer de um dos casos mais emblemático dos últimos tempos ocorrido em São Paulo no ano de 1994: o Caso Escola Base, onde os proprietários da escola infantil, bem como o motorista do transporte escolar e um casal de pais de um aluno, foram investigados por abuso sexual em um procedimento ostensivamente publicizado[5].

Nesse contexto, é muito comum assistirmos autoridades investigadoras e a própria mídia se utilizarem do manto da liberdade de informação, da roupagem das expressões “suspeito”, “investigado” ou “indiciado”, e da justificativa de que a divulgação da imagem irá “auxiliar no surgimento de novas vítimas e testemunhas”, para forjar conceitos ou afirmações que acabam por induzir prejulgamento de fatos ou antecipação de culpa de pessoas suspeitas, presas ou investigadas.

É certo que a Constituição Federal consagra a liberdade de imprensa, ao garantir o acesso de todos à informação (art. 5º, XIV) e a livre expressão da atividade de comunicação, independentemente de censura ou licença (art. 5º, IX), e ao vedar qualquer embaraço à plena liberdade de informação jornalística mediante censura de natureza política, ideológica e artística (§§ 1º e 2ª do art. 220)[6].

A mesma Constituição, entretanto, tendo como base a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), contrapõe à liberdade de imprensa direitos de iguais valores consistentes na inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas (art. 5º, X).

A questão em exame coloca em aparente embate a liberdade de informação e os direitos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas investigadas[7], conjugados com os princípios da dignidade da pessoa humana e da presunção da inocência (art. 5º, LVII, CF).

Mas para além da dicotomia entre a liberdade de informação, o direito à intimidade e a presunção da inocência, os casos de publicidade ostensiva traduzem ainda a necessidade de reflexão sobre a chamada “lawfare”, termo que designa estratégia jurídica de dominação de um sujeito em detrimento do outro, mediante manipulação de meios legais disponíveis para mitigar o sigilo das investigações em detrimento das garantias do investigado.

No Brasil, a estratégia “lawfare”, em regra, está associada à publicidade ostensiva (“trial by media”) pela mídia televisiva, com abuso do direito à informação para se formar antecipadamente um juízo de culpa em desfavor do investigado[8].

Consubstanciada na utilização fragmentada de informações “vazadas” para imprensa como possível tática para sustentar as ações dos órgãos de persecução penal, essa estratégia visa propiciar um ambiente de “comoção social” em desfavor do investigado, a ponto de legitimar, por exemplo, a obtenção de medidas cautelares mais incisivas, como a prisão provisória, buscas e apreensões, etc.

Porém, no âmbito de um Estado de Direito não se pode dar guarida às estratégias que objetivem legitimar o exercício abusivo de qualquer função pública.

Por isso, do que foi exposto para reflexão é possível concluir que:

  1. a) o sigilo das investigações justifica-se sob duas perspectivas; tanto interessa à investigação, na medida em que sua divulgação pode colocar em risco o conjunto de elementos informativos do fato em apuração, quanto à tutela da imagem do investigado, além de prevenir o sensacionalismo e a publicidade ostensiva.
  2. b) O direito à liberdade de expressão ou de informação não pode ser utilizado de forma abusiva, tornando-se necessária a declaração da nulidade (absoluta) das investigações que se utilizarem da estratégia da “lawfare”, com a exploração indevida das imagens de investigados (“trial by media”), e a consequente supressão ou debilitação dos direitos à ampla defesa, contraditório, presunção de inocência. 

    *Roberto Serra da Silva Maia é mestre em Direito. Advogado criminalista. Conselheiro Federal pela OAB-GO e professor universitário.

    REFERÊNCIAS

[1] Disponível em: <https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2023/12/05/caso-amelia-vitoria-policia-prende-e-indicia-novo-suspeito-por-estuprar-e-matar-menina-que-desapareceu-ao-sair-para-buscar-irma-em-escola.ghtml>. Acesso em dez. 2023.

[2] Disponível em: <https://opopular.com.br/cidades/m-e-e-filho-morreram-apos-serem-envenenados-durante-cafe-da-manh-diz-delegado-1.3094250>. Acesso em dez. 2023.

[3] Disponível em: <https://opopular.com.br/cidades/veja-quem-e-o-pastor-de-goiania-investigado-por-importunac-o-sexual-que-foi-para-o-grammy-latino-este-ano-1.3095023>. Acesso em dez. 2023.

[4] Disponível em: < https://opopular.com.br/cidades/veja-quem-e-o-suplente-de-vereador-investigado-por-estupro-contra-ao-menos-cinco-garotas-de-programa-1.3093694>. Acesso em dez. 2023.

[5] Disponível em: <https://canalcienciascriminais.com.br/caso-escola-base/>. Acesso em dez. 2023.

[6] Em sede de investigação criminal, inclusive, vigora no Estado de Goiás a Portaria n. 547/2021, exarada pelo Delegado-Geral da Polícia Civil (DGPC), em que procura regulamentar as condutas na divulgação de ações e operações, inclusive em redes sociais, aplicativos de comunicação instantânea e sítios eletrônicos (https://datp.policiacivil.go.gov.br/wp-content/uploads/2022/03/Portaria_547__Regulamenta_Divisao_Comunicacao_e_Atos_Servidores.pdf).

[7] Aliás, a imagem e a intimidade, por serem atributos da pessoa investigada, somente podem ser flexibilizadas na hipótese declarada por escrito e no processo, com anuência do advogado, conforme dispõe o art. 20 do Código Civil.

[8] Cf. TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de processo penal e execução penal. 16. ed., Salvador: JusPodivm, 2021, p. 127-9.