Regulamentação de penalidades pode influenciar ciclistas e pedestres na escolha do meio de transporte

Há vinte anos, o técnico em geoprocessamento Fernando Soares usa a bicicleta para ir ao trabalho e para passear pela cidade. Foto: Karine Rodrigues


Karine Rodrigues

Wanessa Rodrigues

A economia de tempo e dinheiro, a sensação de liberdade, além da preservação do meio ambiente, fizeram o técnico em geoprocessamento Fernando Soares optar pela bicicleta como principal meio de transporte para se locomover na Capital. Há 20 anos, ele usa a “magrela” para ir e voltar do trabalho, em um percurso de, no mínimo, 16 quilômetros diários entre a sua casa, no Jardim América, e o Paço Municipal, no Park Lozandes. Todos os benefícios, segundo diz, compensam a falta de segurança e o medo de enfrentar o caos do trânsito da cidade. “Em cidades do tamanho de Goiânia ou maiores, você leva mais vantagem ao percorrer distâncias curtas de bicicleta. E, dependendo do horário, esses deslocamentos são muito mais rápidos”, acrescenta. Fernando observa, ainda, que economiza R$ 190 por mês com transporte, o equivalente a R$ 2.280 anuais.

Depois da caminhada, Sandra chega a um dos prédios da UFG para trabalhar. Foto: Karine Rodrigues

Com uma distância um pouco mais curta, quatro quilômetros, a auxiliar de serviços gerais Sandra Bezerra também escolheu um meio de transportes considerado alternativo para cumprir sua jornada diária. Há cinco anos, ela vai a pé de sua casa, no setor Itatiaia, até o campus da Universidade Federal de Goiás (UFG), onde trabalha no setor de limpeza. Sandra enumera como vantagens de ir a pé para o trabalho a economia, os benefícios da caminhada e o fato de respirar um bom ar. De outro lado, ela reclama da falta de estrutura para pedestres e do desrespeito de parte dos motoristas. “Muitas vezes, chego atrasada ao trabalho devido ao tempo em que fico esperando para atravessar a rua. Deveria haver mais benefícios, como uma passarela ou mais faixas, do jeito que está nada favorece”, relata.

Apesar do esforço desses dois profissionais e de outros tantos moradores de Goiânia em se locomover a pé ou de bicicleta, a iniciativa pode ser abandonada por medo de levar multa. A resolução 706/17 publicada no Diário Oficial da União pelo Conselho Nacional de Trânsito (Contran), regulamentou a aplicação de penalidades para ciclistas e pedestres que desrespeitarem as leis de trânsito em todo o País. As multas já eram previstas no Código de Trânsito Brasileiro (CTB), na Lei 9.503/97 – artigos 254 e 255 -, mas nunca haviam sido normatizadas. Quando as regras estiverem em vigor – a partir de abril de 2018 -, quem atravessar fora da faixa e for autuado terá de desembolsar R$ 44,19, metade do valor de uma multa leve aplicada aos motoristas de carro. No caso dos ciclistas que desrespeitarem as regras, a multa será de R$ 130,16.

 


Desestímulo para o pedestre e ciclista

A ouvidora da Junta Comercial do Estado de Goiás (Juceg), Lívia Carla Martins, pediu transferência do local de trabalho para poder ir a pé de casa para o serviço. Desde março deste ano, ela segue essa rotina. Segundo diz, o principal benefício é a qualidade de vida, pois se economiza tempo no trânsito e a saúde do corpo e da mente melhoram. Lívia não avaliou positivamente a regulamentação. Ela diz que, antes de tudo, é necessário  fazer campanhas educativas junto aos atores do trânsito. Além disso, que a situação deveria ter sido melhor analisada antes de se determinar qualquer tipo de multa.

“Acho difícil também porque não há sinalização para pedestre, como as faixas, em todos os lugares onde deveria ter. Por exemplo, no meu trajeto de casa para o trabalho não existe nenhuma faixa de pedestre, todas as ruas que eu atravesso são fora da faixa. Não existe nas proximidades e, se eu for andar até chegar a uma faixa, não vai compensar. Eu acho que a lei é um desestímulo para o pedestre e ciclista”, relata Lívia.

Edson de Melo, fundador do GO Ciclo, acredita que a partir da data em que a regulamentação entrar em vigor haverá algum alarde, por parte da Secretaria Municipal de Trânsito, Transportes e Mobilidade (SMT) e do Batalhão de Trânsito montando blitz explicativas. “Acho que ficará só nisso. Não há agentes suficientes para fiscalizar e nem as cidades no País têm estrutura para exigir correção da conduta dos ciclistas, que no geral, respeitam bem as leis de trânsito”, adverte ele.

Impraticável – Antenor Pinheiro, perito em trânsito e membro da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANPP), observa que é importante regulamentar a conduta de todos os atores do trânsito, porém a aplicação das penalidades nesse caso é impraticável. Isso porque, não há estrutura necessária para pedestres ou ciclistas nas cidades. Segundo diz, calçadas são fora de padrão e, em muitos locais, esburacadas, ocupadas por carros, motos ou, até mesmo, mesas de bares. “Assim, o pedestre acaba sendo jogado para as ruas”, observa. Além disso, o especialista salienta que não há faixas de pedestres adequadas e que as mesmas não recebem a manutenção correta.

Pinheiro salienta que a situação dos ciclistas também é difícil, justamente pela falta de estrutura. Ele lembra que, hoje, são 85 milhões de bicicletas em todo o Brasil, só que as cidades não estão preparadas para recebê-las. Falta, por exemplo, política de estimulo, ciclovias que contemplem mais locais e que sejam integradas às redes de transporte público, e a manutenção das mesmas. O perito cita ainda a falta de agentes de trânsito para fiscalizar as condutas de pedestres e usuários de bicicleta.

Fiscalização – A fiscalização e cobrança das multas em Goiânia ficarão a cargo dos agentes da Secretaria Municipal de Trânsito, Transportes e Mobilidade (SMT), que hoje são 320. Número considerado baixo para cobrir uma população de mais de 1,3 milhão de habitantes apenas de Goiânia. Segundo o secretário Municipal de Trânsito, Fernando Santana, os agentes são contratados via concurso público e não há previsão da realização de um novo certame. Eles farão a abordagem do pedestre e do ciclista e anotarão os números de CPF e RG. De acordo com o Departamento Estadual de Trânsito de Goiás (Detran-GO), será produzido um talonário especial para a cobrança das penalidades.

Segundo o Coordenador Geral de Educação para o trânsito do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), Francisco Garonce, desde julho do ano passado estavam sendo feitos estudos para regulamentar a lei. Além disso, ele explicou que existe uma resolução do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) que estabelece um cronograma das campanhas educativas de trânsito a serem realizadas em todos os departamentos de trânsito do Brasil. Como a campanha de volta as aulas, o maio amarelo e ações voltadas para o pedestre e para o ciclista, que são feitas o ano todo.

“Hoje nós sabemos ainda que as maiores vítimas do trânsito são os pedestres. Só se alcança a segurança no trânsito através de um tripé: engenharia, educação e fiscalização”. E a explicação é a seguinte: a engenharia viária trabalha vias seguras e bem sinalizadas. A parte da educação é muito importante porque nada adianta ter vias seguras e bem sinalizadas, veículos, motos e bicicletas seguros, se as regras de trânsito não forem respeitadas. E a fiscalização é a garantia de que de que tudo está funcionando bem.


Regulamentação veio para educar

“A regulamentação veio mais para educar do que para punir. Veio para que as pessoas tenham mais cuidado, que contenham a direção agressiva e passem a respeitar a sinalização” , esta é a opinião da educadora de trânsito do Departamento Estadual de Trânsito de Goiás (Detran-GO), Regina Lúcia Siqueira da Costa. Ela afirma que o órgão realizará ações corpo a corpo com a população e que existe essa necessidade de campanhas. “O pedestre infelizmente anda no meio da rua é preciso mudar este comportamento”.

O gerente de Fiscalização e Aplicação de Penalidades do Detran-GO, Coronel Júlio César Mota, ressalta que se trata de uma lei de difícil aplicabilidade, pois entra em choque com a cultura da população. Contudo, ele alerta que serão feitas campanhas educativas para que as pessoas entendam as regras, modifiquem seus hábitos e não reclamem de desconhecimento. “O cidadão não pode ser pego desprevenido, e essa lei não é difícil de cumprir”, mas ele não esclareceu como serão feitas e qual data de início da campanha de esclarecimento sobre a regulamentação.

Confira no vídeo abaixo a opinião da advogada Bruna Sthefany Macedo Silva, do escritório Rocha, Sávio e Macedo Advogados Associados. A especialista explica que a norma apenas regulamenta os procedimentos para aplicação de penalidades já previstas no Código Brasileiro de Trânsito.


Mudança de vida

O empresário Leandro Martins Silva, de 31 anos, comprou sua primeira bicicleta em 2011. Inicialmente, a intenção era perder peso e melhorar a qualidade de vida. Ele perdeu 30 quilos pedalando. Mas, o que começou como uma atividade física voltada para a saúde, virou paixão e rotina de desportista.

Atualmente, ele faz parte de uma equipe de ciclistas e pedala de segunda-feira a sexta-feira em Goiânia, em um treino de 30 a 40 quilômetros. Aos finais de semana, chega a andar com a bike até 180 quilômetros. O empresário, que hoje tem quatro bicicletas, participa de competições e já coleciona inúmeras medalhas.

Leandro Martins Silva: paixão pela bicicleta. Foto: arquivo pessoal

Antes de se dedicar aos treinos e competições, Leandro utilizava a bicicleta para ir ao trabalho. O empresário conta que saia todos os dias de casa às 6 horas da manhã e, em meio a carros e motocicletas, enfrentava o trânsito da Capital para chegar a seu destino. Mas, a falta de condições das vias para favorecer o ciclista, fizeram com que ele desistisse de usar a bike como seu principal meio de transporte.

“Se a cidade tivesse a estrutura necessária para os ciclistas, não pensaria duas vezes em trocar o carro pela bicicleta. Nossas ciclovias ainda são insuficientes”, diz. Além disso, Leandro ressalta que é necessário um trabalho educacional para mudar a cultura dos motoristas. Ou seja, para que haja mais respeito entres os atores que envolvem o trânsito. “Para que pedestres, ciclistas, motociclistas e motoristas de carros convivam em harmonia”, completa.

Estrutura – Quem anda por Goiânia sabe que a cidade tem tudo para ser a Capital das bicicletas no País. A cidade é muito plana, o que favorece a utilização desse meio de transporte. Mas, apesar de ter sido planejada, apenas o plano diretor de 2007 contemplou um projeto de circulação de bikes pelo município. Há dez anos, foi prevista a construção de 174 quilômetros de ciclovias na cidade.

De acordo com Benjamin Kennedy Machado, assessor de planejamento da Companhia Metropolitana de Transportes Coletivos (CMTC), em Goiânia há 100 quilômetros distribuídos entre ciclovias, ciclorrotas e ciclofaixas. Ele também informou que, em 2018, as obras serão retomadas e os 74 quilômetros que faltam serão construídos, porém ele não disse como serão distribuídos. Além disso, o novo plano diretor de Goiânia previsto para este ano prevê a construção do dobro do que foi previsto em 2007.

Já o secretário Municipal de Trânsito de Goiânia, Fernando Santana, afirma que na Capital há 80 quilômetros distribuídos entre ciclovias, ciclofaixas e ciclorrotas e que no momento estão em fase de revitalização e de integração entre elas. “Queremos, através delas, melhorar a mobilidade das pessoas. É uma questão cultural, a sociedade vai se adaptando aos poucos, hoje já se vê muita gente de grande poder aquisitivo se locomover de bicicleta”, enfatiza.

A equipe do Portal Rota Jurídica tentou conseguir o mapa das ciclovias, ciclofaixas e ciclorrotas de Goiânia, mas a busca se tornou um jogo de empurra e ninguém se dispôs a nos repassar tal documento.


Falta de estrutura e respeito causa acidentes e mortes no trânsito

A falta de respeito com a parte mais frágil do trânsito, faz com que pedestres e ciclistas não estejam seguros nem mesmo nos locais destinados a eles, como as ciclovias e calçadas. O número de pedestres e ciclistas mortos em Goiás não é pequeno. E pior, não tem diminuído significativamente com o passar dos anos. Nem mesmo as campanhas educativas têm feito os motoristas mudarem de atitude.



A Coordenadora de Vigilância de Violência e Acidentes da Secretaria de Estado da Saúde (Viva/ SES), Maria de Fátima Rodrigues, diz que a Capital do Estado não está preparada para induzir a utilização desses modais. Ela ressalta que seriam necessárias muitas campanhas para que principalmente o condutor de carro respeite o pedestre e o ciclista. “Essa regulamentação está anos luz de ser eficaz, mas acredito que é necessária para a redução de mortalidade e a redução da violência no trânsito”, argumenta.

De acordo com dados do Viva/SES, de 2010 a 2015 a taxa de letalidade hospitalar de pedestres acidentados foi a segunda maior do período, correspondendo a a 5,7% dos casos. Em primeiro lugar, foi a de ocupantes de carros, com 6,1%. Os gastos em hospitais públicos estaduais com acidentes envolvendo pedestres e motociclistas não são baixos. De 2010 a 2016, o custo de internações de motociclistas foi de mais de R$ 45 milhões, o equivalente a 64,7% do total gasto no período. Já os dispêndios com internações de pedestres durante os mesmos anos foram de R$ 10,2 milhões, que correspondeu a 14,7%.

Porém, as atitudes precisam mudar e os ciclistas e pedestres devem obedecer a lei e atravessar na faixa, isso é imprescindível para minimizar o risco de acidentes e mortes. Segundo a delegada titular da Delegacia Estadual de Investigações de Crimes de Trânsito (Dict), Nilda Andrade, de janeiro de 2015 até o início deste mês foram registradas, em Goiânia, as mortes 88 pedestres e 42 ciclistas que atravessaram fora da faixa. O número pode ser maior, uma vez que as vítimas não graves não se queixam na delegacia.