A socioafetividade e a família: breve análise jurídica

*Kelly Lisita Peres

Acreditava-se que a palavra família podia ser definida como um conjunto de pessoas que possuíam graus de parentesco e que conviviam simultaneamente.Para exemplificarmos podemos citar pai e filho, que possuem um grau de parentesco de ascendência e descendência, ou seja são parentes em 1ºgrau, ou ainda os cônjuges que são parentes por afinidade.

Inegável é o fato de que há tempos passados, o modelo de família era representado pelas figuras do pai, da mãe e do filho e que o pai era considerado o chefe da família, logo o modelo familiar era o patriarcal, o genitor era visto como a pessoa que tinha o poder do “sim e do não” e que todas as decisões cabiam a ele.

Diante tantas inovações o Direito de Família jamais poderia ‘fechar os olhos” para as novas construções familiares e essa situação deve-se ao fato da independência e das conquistas femininas,das lutas incessantes para o reconhecimento das diversas formas de amor, do sacrifício de muitos genitores e genitoras que nunca pouparam esforços para a criarem sozinhos sua prole e sendo assim,logo a sociedade necessitou “enxergar” as diferentes e várias espécies de famílias,que aquele  modelo tradicional de composição familiar já não era mais o único .

São tantos temas e alterações que nos fazem refletir sobre como um assunto era anteriormente abordado e como hoje é tratado em atenção às significativas mudanças no cenário atual.

No âmbito do Direito de Família houveram algumas mudanças e reconhecimentos que são mais que merecidos, são justos!

Em relação ao divórcio, a Emenda 66/10 militou no sentido de não ser mais necessário a separação judicial como um requisito para posteriormente o divórcio,que inclusive pode ser feito em Cartórios de Tabelionato de Notas,desde que haja consenso entre as partes e ausência de filhos incapazes,da mesma forma o inventário.(Lei 11.441/2007),a união estável é reconhecida como entidade familiar,a  relação homoafetiva também passou a ser vista como direito e outra situação denominada de socioafetividade nasceu e trouxe consigo para o seio do Direito de Família uma análise sobre a prevalência, na maioria dos casos ,da verdade real  em relação à verdade biológica.

O que podemos vislumbrar é a seguinte situação:a socioafetividade abrange tanto o pai como a mãe do coração,para melhor compreensão vale citar o padrasto ou a madrasta que do papel de “boadrasta e bomdrasto” foram reconhecidos justamente como pai ou a mãe sociafetivos, por terem construído com seus enteados(as) uma verdadeira história com traços na maternidade e na paternidade no que concerne ao carinho,ao amor,à dedicação e a  presença!O amor  constrói seus alicerces na convivência,na aproximação entre pessoas que vivem como pais/mães e filhos(as) no entanto sem possuírem o mesmo sangue,ou seja não existindo um parentesco biológico,mas baseado em respeito,diálogo,reciprocidade de amor e dedicação.

O grau de parentesco para o Direito Civil pode ser compreendido como toda e qualquer relação que gere efeito jurídico, mas que não deve ser confundido com a questão pertinente tão somente à consaguinidade, podendo o mesmo ser natural, civil ou ainda por afinidade.

A adoção  gera parentesco civil, os cônjuges ou conviventes e seus familiares possuem parentesco por afinidade e os laços de sangue geram o parentesco consanguíneo ou biológico.É importante esclarecer que a adoção extingue os laços biológicos do adotado e é ato irrevogável.

A sociafetividade não surgiu com o objetivo de excluir da vida de quem quer que seja a figura do pai ou da mãe, por mais ausentes ou não que sejam, mas propiciar àquelas pessoas que criam como pais ou mães os seus filhos advindos do coração, o justo reconhecimento por todo amor direcionado aos mesmos.

Existem situações em que pessoas conhecem e convivem com o pai biológico e o sociafetivo (Bomdrasto) e outras pessoas, no entanto, só convivem com o pai sociafetivo, por isso o Direito em muitos casos, menciona que a verdade real está prevalecendo no que pertine à verdade biológica.Mas é importante dizer que cada pessoa tem sua história e suas raízes e que os pais e mães biológicos ainda que ausentes não podem jamais ser excluídos da vida de seus filhos.

A filiação então por sua vez ganhou um tópico que honradamente reconheceu que pais e mães  verdadeiramente são aqueles que criam,que educam,que dedicam seu tempo a ensinar,brincar,ouvir,dialogar,dizer “não”,enfim,são aqueles que fazem-se presentes a todos os momentos porque o amor fala mais alto e não a questão consanguínea, afinal cuida-se não só por esse último fator,mas pelo amor,pelo verdadeiro amor,aquele que vem com os dias e as noites,as dormidas e as mal dormidas em virtude de febres, pesadelos,viroses,com as brincadeiras de casinha ou de carrinho,com o abraço apertado no dia do aniversário,da alegria nas noites de natal e nas viradas do ano,nas festas e reuniões escolares,na “chamada de atenção”quando a atitude não foi a melhor e com a paciência de apontar o  caminho certo.

Ser pai e mãe vai muito além de ter o mesmo sangue, de ser apenas genitor ou genitora em outras palavras, ter apenas simplesmente gerado, contribuído para a concepção. Ser pai e mãe significa, pois, doar tudo de si, dar a vida, fazer renúncias em prol do melhor para o filho, dedicar-se e crescer profissionalmente estando lado a lado com o filho, acompanhando-o em seu desenvolvimento, amparando-o e orientando- no que for preciso.Ser pai e mãe no verdadeiro sentido é ter vontade e lutar por crescer como pessoa e profissionalmente não por vaidades, mas visando oferecer boas condições de vida para o filho, para que nada lhe falte.

Ser genitor na acepção da palavra significa ter gerado ou ter de forma biológica contribuído para a gestação, mas ser pai e mãe é ser tudo, fazer de tudo para o filho sempre que possível! Filho (s) precisam de afeto e atenção sempre e não de vez em quando.Ser pai, ser mãe é missão, é ensinamento, é conquista, é benção, é doar amor e senti-lo de forma incondicional.É tirar o pão da boca para ofertar apenas ao filho, quando não for possível dividi-lo.

O que a lei compreendeu foi que tanto o pai como a mãe biológicos como os socioafetivos e a multiparentalidade são merecedores de reconhecimento e respeito, sem excetuarmos que é direito de todos saber quem é o pai biológico, ter seu sobrenome, contato, convívio.

A figura do pai socioafetivo ou até tempos atrás “padrasto” tem sido cada vez mais comum e frequente na vida de muitas crianças e adolescentes que dizem ter “dois pais”,que os amam e que querem ter o mesmo sobrenome deles também.Dessa forma a legislação manifestou-se no sentido de que pode haver a acréscimo do sobrenome do pai ou mãe socioafetivo no documento daquele que almeja essa situação.Não se fala em hipótese alguma sobre não amar ou desconsiderar o pai ou a mãe biológicos,mas sim de reconhecer o amor daquele que também cria e ama independentemente do fator consanguíneo.

Indubitável é que existem pais biológicos que são maravilhosos como tal: educam, criam, preocupam, são presentes e seria excelente sempre que todos pudessem ter seus “dois pais”, afinal receber amor é algo muitíssimo bom, mas também não podemos deixar de observar a ausência infelizmente de muitos pais biológicos e muito menos deixar de enaltecer aqueles que criam sozinhos e com muita dignidade seus filhos.

Há pais que assumiram o papel de pai e mãe e estão exercendo-o com tal esplendor ocasionando admiração por parte de toda a sociedade.

Não podemos também confundir a adoção com a multiparentalidade por serem institutos diferenciados, no primeiro alguém designado adotante pede em juízo para adotar uma pessoa e consequentemente terá o direito de alterar se quiser o prenome e o sobrenome do adotado que terá consequentemente alterada sua filiação.O filho adotivo tem igualdade de direitos assim como os filhos biológicos, vale ressaltar.A adoção extingue a filiação dos pais biológicos e é ato irrevogável. A socioafetividade não extingue a filiação biológica,reconhece pois a advinda do amor e da criação.Em outras palavras pode-se afirmar que a intenção da socioafetividade é somar e jamais excluir.

A multiparentalidade significa dizer que alguém tem dois pais ou duas mães, é aquela relação que envolve os pais biológicos e os padrastos ou madrastas.O Direito não poderia deixar de reconhecer essa situação e muito menos abster-se de produzir efeitos jurídicos em relação a todos eles.

Atualmente a família tem seus alicerces fixados e inevitavelmente estruturados na relação de afetividade, solidariedade, não havendo a exclusão do vínculo biológico, mas sim amparando o socioafetivo: a multiparentalidade.

A socioafetividade estabelecida não exclui os direitos e deveres de nenhum dos genitores, como dever de cuidado, de pagar pensão alimentícia, dos direitos sucessórios e outros.

O procedimento para o reconhecimento da multiparentalidade não é complicado como muitos acreditam:basta que a pessoa menor, acompanhada por seu pai e mãe ou ainda representante legal compareça até o cartório de registro civil,juntamente com o pai ou mãe sociafetivo para que haja legalmente o ato,sendo feito o acréscimo do sobrenome do socioafetivo ao nome do filho em questão.O reconhecimento deve ser voluntário e perante o Oficial do Registro,sendo irrevogável e caso haja a necessidade de desconsiderar,a via judicial deve ser invocada,deve haver diferença de 16 anos entre o pai ou mãe socioafetivo com o filho ou filha a ser reconhecido(a).As pessoas com idade igual ou superior a 18 anos,sendo maiores e capazes podem requerer o reconhecimento da socioafetividade, independentemente do estado civil.

O artigo 11 do provimento 63 do Conselho Nacional de Justiça, em seus parágrafos 4º e 5º trata da anuência pessoal do filho maior de 12 anos de idade.

É vedado o reconhecimento de irmãos entre sí, da mesma forma no que pertine aos ascendentes, exemplo: uma avó não pode dizer que o neto é seu filho socioafetivo à luz do artigo, parágrafo 3º do provimento em questão.

Pode-se ainda em testamento, que é ato de disposição de última vontade, deixar manuscrito o reconhecimento da socioafetividade seja em um testamento público ou privado.

O provimento número 63 do Conselho Nacional de Justiça, de 17 de novembro de 2017 traz as regras atinentes à emissão de certidões de casamento, nascimento e óbito.

Se houver suspeita de fraude, má-fé, o Oficial do Registro deverá recusar-se a celebrar o registro e encaminhar o fato ao juiz competente.

A condição da posse do estado de filho deve ser analisada de forma minuciosa pelo Oficial, que deve solicitar duas testemunhas que atestem conhecer o requerente e o filho e a relação afetiva entre eles, além dos documentos exigidos pelo provimento 63 do CNJ.

O afeto não nasce com o fato de alguém ser apenas considerado genitor,nasce do genitor que é pai e mãe,do que é pai e mãe sem ter sido genitor.Realmente grande inovação para as relações familiares e em algumas leituras nessa área podemos ainda manifestar-nos no sentido de que a verdade real tem prevalecido sobre a verdade biológica,muitos filhos que sequer conhecem os pais tem buscado o reconhecimento da socioafetividade e não da verdade biológica e outros mesmo com o vínculo com o pai biológico fazem questão de homenagear,de agradecer e acima de tudo reconhecer a socioafetividade. A verdade real acompanha a biológica em casos raros e isso porque muitos casais ainda não entenderam que eles dissolveram a sociedade conjugal,mas não a estabelecida com os filhos.

É comum verificarmos a socioafetividade mais em situações que envolvam pessoas na representação da figura paterna conforme já mencionado outrora.

Alguns princípios como o da dignidade humana e da afetividade são enaltecidos quando há a manutenção de vínculos chamados de “parentais” e a lei deve sempre fazer valer o direito daqueles que os tem e no caso da socioafetividade, por mérito, amor verdadeiro e dedicação. A socioafetividade ganha muito espaço nas relações familiares e isso é bom para o enaltecimento de sentimentos e formação de vínculos duradouros e positivos.

Não é fácil criar, educar e também não é impossível haver amor nas várias formas de ser pai e mãe.O mérito da maternidade/paternidade é reconhecer que o filho (a) é o motivo pelo qual vivemos e por ele (ela) tudo fazemos, não deixando que os próprios interesses e vaidades prevaleçam sobre as necessidades do filho, que para vivermos é preciso que o filho esteja bem e com saúde.Pai e mãe são aqueles que criam!

Reconhecimento e gratidão são os sentimentos que mais podem descrever o amor expresso por alguém que enxerga em outra pessoa a segurança, o afeto, a dedicação que só um verdadeiro pai ou mãe poderiam conceder ao (s) filho (s). É nobre toda a pessoa que se amolda ao papel de pai ou mãe socioafetivos, gesto cabível a pessoas detentoras do real significado da palavra amor.

A socioafetividade veio acrescentar aspectos positivos, como a sensação de poder ter alguém, conviver e chamar esse alguém de pai ou mãe, novamente faz-se mister mencionar que não há exclusão da paternidade ou maternidade biológica (Fato que só ocorre na adoção).

Seria muito bom que todas as pessoas tivessem em dobro o carinho e o amor de pais e mães, consequentemente poderia haver um maior número de cidadãos mais seguros e amparados sentimentalmente.

O Direito em toda a sua amplitude e na busca pela modernização entendendo e acompanhando as transformações, tem buscado modificar alguns conceitos que até então eram tradicionalíssimos como aquele que pai e mãe e filho é que formavam família.Hoje por família entendemos mães ou pais solteiros,divorciados ou viúvos que criam seus filhos,por avós que fazem esse papel em relação aos netos órfãos,por pais e mães biológicos e socioafetivos,por pais adotivos,por pais,por mães,independentemente de credo,de orientação sexual ou de estado civil.Todas elas,sejam a monoparentais,as pluriparentais, as homoafetivas, as adotivas, as sociafetivas, as biológicas são merecedoras de destaque,respeito e admiração!

 *Kelly Lisita Peres é advogada, professora universitária, especialista em Docência Universitária, Direito Penal e Direito Processual Penal.