“Ponto Britânico”: conceito, implicações e a alternativa existente

O advogado João Vítor F. Pimenta escreve, na coluna desta quinta-feira (21), sobre os registros de entrada e saída dos empregados de um estabelecimento. Ele é auxiliar jurídico no Lara Martins Advogados.

Leia a íntegra do texto:

João Vítor F. Pimenta

Iniciada em solo britânico, em meados do século XVIII, a denominada Revolução Industrial pode ser brevemente conceituada como um forte processo de reformulação social e econômica, sobretudo no que se refere aos meios e formas de produção prevalentes até então. Uma importante e peculiar característica desse período foi o surgimento e o desenvolvimento de tecnologias que se espalharam pelo mundo todo e que garantiram cada vez mais a formação e a consolidação do modelo capitalista, presente até os dias de hoje.

Contudo, é importante sempre ter em mente que a Revolução Industrial não se limitou única e exclusivamente aos avanços tecnológicos e ao crescimento das indústrias, mas também a um período em que houve um elevado e constante abuso da mão de obra trabalhadora, sobretudo dos trabalhadores das grandes industrias, dentre os quais haviam crianças, idosos e até mesmo mulheres grávidas.

Nas palavras do Professor e autor Gustavo Felipe Barbosa Garcia:

De forma semelhante ao trabalho da mulher, embora de modo até mais marcante, observa-se durante a Revolução Industrial, principalmente no século XIX, a utilização do trabalho infantil, em péssimas condições, causando sérios prejuízos ao desenvolvimento físico e psicológico da pessoa.

As crianças e adolescentes eram expostos a trabalhos prejudiciais à saúde, com extensas jornadas, colocando em risco a sua segurança e a própria vida, com salários inferiores aos pagos aos adultos. (GARCIA, 2018, p. 1.103)

Felizmente, com o passar dos anos e graças às intensas lutas e reinvindicações por direitos e garantias sociais à classe trabalhadora, a sociedade foi percebendo e se alterando no sentido de que o crescimento econômico e industrial não poderia se dar de forma descontrolado e a qualquer custo. Com isso, foi se consolidando cada vez mais o entendimento de que, em que pese fosse um processo de evolução importante e inevitável, os trabalhadores(as) tinham direito à melhores condições de trabalho, as quais deveriam respeitar e garantir não só sua integridade física, como também psicológica.

Essa salutar busca por melhorias nas condições de trabalho repercutiu diretamente no surgimento e no desenvolvimento dos “direitos trabalhistas”, os quais se fazem presentes e necessários até os dias de hoje em nossa sociedade.

Em meio aos inúmeros e diversos direitos trabalhistas que foram sendo criados e/ou reconhecidos ao longo de nossa história, podemos apontar o limite da jornada de trabalho como sendo um dos principais exemplos de garantia de melhores condições de trabalho e de dignidade ao(à) trabalhador(a), eis que graças a essa imposição os empregadores não podem mais exigir que seus empregados(as) trabalhem horas a fio, como acontecia durante a Revolução Industrial e que é muito bem retratado no famoso filme “Tempos Modernos” (1963), de Charlie Chaplin.

O juiz do trabalho, professor e autor Luciano Martinez, sobre a jornada de trabalho, esclarece que:

Jornada de trabalho é o tempo que o empregado permanece à disposição do empregador durante um dia. Por isso, é uma redundância falar em jornada diária, porque toda jornada é obviamente diária; constitui, por outro lado, uma incoerência falar em jornada semanal ou mensal, porque jornada somente diz respeito ao dia, e nunca à semana ou ao mês. (MARTINEZ, 2021, p. 446) (grifos do original)

Em se tratando mais especificamente do contexto brasileiro, temos que o limite da jornada de trabalho está previsto no artigo 7º, inciso XIII, da Constituição Federal, sendo ele “de até oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho”. (BRASIL, 1988).

Também cabe mencionar que o legislador brasileiro também versou sobre a duração normal do trabalho na CLT, mais especificamente no artigo de número 58, oportunidade na qual estabeleceu que:

Art. 58 – A duração normal do trabalho, para os empregados em qualquer atividade privada, não excederá de 8 (oito) horas diárias, desde que não seja fixado expressamente outro limite.

  • 1oNão serão descontadas nem computadas como jornada extraordinária as variações de horário no registro de ponto não excedentes de cinco minutos, observado o limite máximo de dez minutos diários.   
  • 2º  O tempo despendido pelo empregado desde a sua residência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para o seu retorno, caminhando ou por qualquer meio de transporte, inclusive o fornecido pelo empregador, não será computado na jornada de trabalho, por não ser tempo à disposição do empregador.

Somado ao mencionado texto constitucional, visando garantir e efetivar ainda mais o respeito aos limites então impostos, temos o artigo número 74, da CLT, com redação dada pela Lei n.º 13.874, de 2019, estabelecendo o seguinte:

Art. 74 – O horário de trabalho será anotado em registro de empregados.

  • 1º – (Revogado)
  • 2º – Para estabelecimentos com mais de 20 (vinte) trabalhadores será obrigatória a anotação da hora de entrada e de saída, em registro manual, mecânico ou eletrônico conforme instruções expedidas pela Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, permitida a pré-assinalação do período de repouso.
  • 3º – Se o trabalhado for executado fora do estabelecimento, o horário dos empregados constará do registro manual, mecânico ou eletrônico em seu poder, sem prejuízo do que dispõe o caput deste artigo.
  • 4º – Fica permitida a utilização de registro de ponto por exceção à jornada regular de trabalho, mediante acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho. (BRASIL, 1943)

Nota-se, portanto, que a legislação em apreço estabeleceu de forma clara e expressa a obrigação dos estabelecimentos com mais de 20 (vinte) funcionários em anotar e registrar a hora de entrada e de saída dos trabalhadores, podendo o referido registro se dar de diversas formas (registro manual, mecânico ou eletrônico). Nesse contexto, uma interessante alternativa que vem se fortalecendo cada vez mais nos dias atuais é o uso de aplicativos de celulares destinados a essa função e que facilitam sobremaneira o registro dos horários. 

Essa obrigação/dever patronal, para além de servir como um meio de impor o respeito aos limites constitucionalmente previstos, também serve como forma de garantir a fiscalização por meio dos órgãos competentes, eis que estes podem se debruçar sobre toda essa documentação, bem como meio de defesa em uma eventual reclamação trabalhista em que a jornada de trabalho e supostas horas extras estão sendo pleiteadas.

Nota-se, portanto, que esses documentos em que constam os registros de entrada e saída dos empregados de um estabelecimento, sobretudo daqueles com mais de 20 (vinte) funcionários, são de elevada importância, motivo pelo qual os cuidados em suas elaborações não podem, em hipótese alguma, serem menosprezado, tampouco ignorados, sob pena de serem invalidados e não utilizados pelo juízo, cabendo ao empregador utilizar de outros meios de prova para demonstrar a jornada de trabalho em questão.

Nesse contexto, visando sempre garantir que as anotações e registros de ponto de sua empresa se encontram em plena e perfeita harmonia para com a legislação vigente e o entendimento jurisprudencial e doutrinário, é extremamente importante que os empregadores estejam sempre em alerta e atentos para não incorrerem na prática que ficou e conhecida no meio jurídico como “Ponto Britânico”.

Batizado por influência da rigorosa e peculiar pontualidade dos ingleses, o “Ponto Britânico” pode ser resumidamente conceituado como a prática de efetuar os registros de entrada e saída dos funcionários nos mesmos horários, todos os dias da semana, sem qualquer tipo alteração, seja para mais ou para menos. Dessa forma, a título de exemplificação, teríamos um cartão de ponto em que demonstraria que o trabalhador nunca atrasou ou antecipou um minuto se quer no momento da sua chegada e/ou saída. O que é praticamente impossível.

Contudo, prevalece em nosso ordenamento jurídico o entendimento de que as informações obtidas por meio de um “Ponto Britânico” não condizem com a fiel realidade de nenhuma empresa ou trabalhador, eis que é muito comum o funcionário chegar ou sair alguns minutos antes ou depois do seu horário de serviço

Nesse sentido, oportuno se faz trazer à baila a redação prevista na súmula n.º 338, III, do TST, que diz que:

Súmula nº 338 do TST JORNADA DE TRABALHO. REGISTRO. ÔNUS DA PROVA (incorporadas as Orientações Jurisprudenciais nºs 234 e 306 da SBDI-1) – Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005. I – É ônus do empregador que conta com mais de 10 (dez) empregados o registro da jornada de trabalho na forma do art. 74, § 2º, da CLT. A não-apresentação injustificada dos controles de freqüência gera presunção relativa de veracidade da jornada de trabalho, a qual pode ser elidida por prova em contrário. (ex-Súmula nº 338 – alterada pela Res. 121/2003, DJ 21.11.2003); II – A presunção de veracidade da jornada de trabalho, ainda que prevista em instrumento normativo, pode ser elidida por prova em contrário. (ex-OJ nº 234 da SBDI-1 – inserida em 20.06.2001); III – Os cartões de ponto que demonstram horários de entrada e saída uniformes são inválidos como meio de prova, invertendo-se o ônus da prova, relativo às horas extras, que passa a ser do empregador, prevalecendo a jornada da inicial se dele não se desincumbir. (ex-OJ nº 306 da SBDI-1- DJ 11.08.2003) (grifo nosso)

Outrossim, vale lembrar que essas pequenas alterações nos horários são legalmente previstas e autorizadas no artigo 58, §1º, da CTL, que estabeleceu que: “Não serão descontadas nem computadas como jornada extraordinária as variações de horário no registro de ponto não excedentes de cinco minutos, observado o limite máximo de dez minutos diários” (BRASIL, 1943).

A positivação desse limite de tolerância permitiu que surgissem cartões de ponto com pequenas e leves alterações, apresentando que por vezes o funcionário chegava às 08h03, 07h58, 08h00, e por vezes saía às 18h05, 18h02, 18h00. Com isso, os registros de ponto passaram a demonstrar de forma mais clara e fiel a realidade da jornada de trabalho daquele empregado em específico.

Nesse sentido, é importante que os responsáveis pelas anotações sejam sempre orientados a registrar a hora exata em que o funcionário chega e/ou sai, não devendo proceder com a prática de “arredondamento” para o horário “fechado” previsto contratualmente. Ou seja, se o empregado chegou às 07h58, este é o horário a ser anotado, e não às 08h00.

Ciente de todas essas questões e peculiaridades, surge a seguinte questão: De que forma o empregador pode evitar que meu estabelecimento incorra na prática do “Ponto Britânico” e acabe consequentemente invalidando todos os seus registros de entrada e saída dos funcionários?

Felizmente, existe em nosso ordenamento uma alternativa disponível que permite ao empregador realizar o registro de ponto de seus empregados sem incorrer na prática do “Registro Britânico”, é o intitulado “Ponto por Exceção”, há tempos reconhecida e validado pelo TST e posteriormente regulamentado por meio da Lei n.º 13.874, de 2019, mais conhecida como “Lei da Liberdade Econômica”.

Nessa modalidade específica haverá uma presunção de que a jornada de trabalho cumprida pelo empregado é a que havia sido estipulado no contrato, 8h às 18h, por exemplo, devendo o empregador proceder com a anotação apenas daqueles dias excepcionais em que houver algum atraso, falta, o cumprimento de horas extras, etc.

Sobre o “Ponto por Exceção”, Maurício Godinho Delgado, expõem que:

O controle de ponto por exceção acontece quando a empresa adota a prática de que os colaboradores não precisam registrar toda atividade durante o expediente de trabalho. A jornada regular de trabalho, que seria a entrada e saída na organização, já estão pré-estabelecidas e não necessitam de marcação de ponto para as empresas que adotem o controle de ponto por exceção. Sendo assim, apenas em casos de atrasos, faltas, horas extras, licenças, férias ou afastamentos entram como controle da jornada (DELGADO, 2019, p. 1.031)

Por fim, mas não menos importante, cabe observar que a utilização do “Ponto por Exceção”, independentemente do número de funcionários da empresa, somente será permitida e válida se houver previsão em acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, conforme determina o já mencionado artigo 74, §4º, da CLT.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 22 jun. 2022.

BRASIL. Decreto-Lei n.º 5.452, Consolidação das Leis do Trabalho: aprovada em 1º de maio de 1943. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm>. Acesso em: 22 jun. 2022.

BRASIL. Lei n.º 13.874 – Lei da Liberdade Econômica: promulgada em 20 de setembro de 2019. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13874.htm>. Acesso em: 22 jun. 2022.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 18. ed. São Paulo: LTr, 2019.

GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de Direito do Trabalho – 12. Ed. Re. atual e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 1103.

MARTINEZ, Luciano. Curso de direito do trabalho. 12. Ed. São Paulo – SP: Saraivajur, 2021.

TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Jornada de Trabalho. Registro. Ônus da Prova – Súmula n.º 338. 25 abr. 2005. Brasília – DF. Disponível em: < https://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/Sumulas_com_indice/Sumulas_Ind_301_350.html#SUM-338>. Acesso em: 22 jun. 2022