Empregado com deficiência (PCD) e a dispensa sem justa causa em momentos de estado de calamidade pública

O estado de calamidade pública é ato urgente praticado pelo Governo em situações reconhecidamente anormais, decorrentes de desastre e/ou que possam causar danos a toda coletividade. Em razão da pandemia instalada pelo coronavírus, este foi declarado em 20 de março de 2020, pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 6/2020. Interessante registro que foi estabelecido um prazo para manutenção da calamidade pública até o dia 31 de dezembro de 2020, para fins fiscais.

A partir daí tivemos o início de uma outra pandemia – a pandemia legislativa brasileira, com diversos diplomas legais regulando diversas áreas do direito de forma excepcional – chegamos a falar em “direito de crise”, com excepcionalidades diversas. Nesse contexto, alguns diplomas legais fizeram previsões utilizando-se o marco legal e temporal do Decreto Legislativo n. 6/2020.

Antes mesmo da edição do DL 6/2020, um outro marco legal foi muito importante para definições da pandemia: a Lei nº 13.979.2020, publicada em 06 de fevereiro. Posteriormente, ela foi alterada por diversos textos legais, entre eles a Lei n. 14.019/2020, publicada em 02 de julho de 2020. A lei 13.979/2020 foi a responsável por fazer previsão de medidas para enfrentamento da emergência da saúde pública, visando combater de maneira racional e tecnicamente adequada o surto pandêmico e, ainda, estabeleceu nos artigos 3º ao 3º- J inúmeras medidas que poderão ser tomadas pelo Estado, neste particular, dentre as quais citam-se isolamento, quarentena, restrição à locomoção, uso de máscaras, exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação, investigação epidemiológica, tratamentos médicos específicos, requisição de bens, dentre outros.

Nesse ínterim tivemos algumas medidas provisórias editadas, entre elas a MP 936 que posteriormente foi convertida na lei nº 14.020/2020, publicada em 06 de julho, que instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, bem como dispôs de medidas complementares para o enfrentamento do estado de calamidade pública e da emergência de saúde pública de importância nacional, decorrente do coronavírus.

Feita essa contextualização histórica necessária, é exatamente aqui que começa a polêmica a respeito do presente artigo.

A  MP 936, originalmente, nada tratava a respeito da Pessoa com Deficiência. Todavia, em sua conversão em lei foi acrescido o artigo 17, inciso V, que prevê expressamente “Durante o estado de calamidade pública de que trata o art. 1º desta Lei (…)a dispensa sem justa causa do empregado pessoa com deficiência será vedada”. Tal dispositivo visava proteger os empregados PcDs em um momento em a existência de empregos passaram a ser incógnitas, assim como buscou solucionar a difícil matemática da quota de PcD ante as suspensões do contrato de trabalho e redução generalizada do quadro de empregados da maior parte dos empreendimentos. Criou-se então a estabilidade do PcD durante a pandemia.

Ocorre que o próprio inciso remete ao art. 1º da Lei 13.979 e que trazia expressamente a seguinte redação:

Art. 1º Esta Lei institui o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e dispõe sobre medidas complementares para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020.

Como se vê, o dispositivo remete expressamente ao DL 6/2020 que trazia justamente o marco temporal de duração do estado de calamidade pública somente até o dia 31/12/2020. Superado o marco legal, passa-se a questionar: ainda há vedação à dispensa do empregado pessoa com deficiência?

É máxima da hermenêutica jurídica de que normas restritivas devem ser expressas, não se admitindo interpretação extensiva. A partir daí, seria lógico concluir que: uma vez que o art. 17, V e este remete expressamente ao art. 1º, que por sua vez remete ao DL 6/2020 enquanto este, por sua vez, traz limitação temporal, então não há que se falar em vedação à dispensa sem justa causa do empregado pessoa com deficiência a partir de 01º de janeiro de 2021.

O dispositivo, por si só, já ensejaria debate a respeito dessa conclusão, uma vez que em sua própria redação ele não deixa um único requisito para a motivação da vedação. Quando o artigo primeiro fala sobre as medidas para o estado de calamidade pública reconhecido pelo DL segue-se a essa premissa o “e” como conjunção aditiva e remete expressamente à “emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus”.

E nesse contexto, ainda em plantão judiciário, no dia 30 de dezembro de 2020, o Ministro Ricardo Lewandowski do Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão cautelar monocrática na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6.625 MC/DF, acolheu o pedido para estender especificamente a vigência dos artigos 3º a 3º-J da Lei nº 13.979.2020, de forma indeterminada. Em sua decisão[1], o ministro fundamentou que:

Na espécie, embora a vigência da Lei n ° 13.979 / 2020, de forma tecnicamente imperfeita, esteja vinculada àquela do Decreto Legislativo n ° 6/2020, que decretou a calamidade pública para fins exclusivamente fiscais, juízes repita-se, vencendo em 31 de dezembro de 2020, não se pode excluir, neste caso precário e efêmero, próprio da presente fase processual, a conjectura segundo a qual a verdadeira intenção dos legisladores foi a manter como medidas profiláticas e terapêuticas extraordinárias, preconizadas, diploma normativo, pelo tempo necessário à superação da fase mais crítica da pandemia, mesmo porque à época de sua edição não lhes era dado antever uma persistência surpreendente e letalidade da doença.

Tal fato, porém, segundo demonstram as evidências empíricas, ainda está longe de materializar-se. Pelo contrário, a insidiosa moléstia causada pelo novo coronavírus segue infectando e matando pessoas, em ritmo acelerado, especialmente as mais idosas, acometidas por cormobidades ou fisicamente debilitadas. Por isso, a prudência – amparada nos princípios da prevenção e da precaução,14 que devem reger as decisões em matéria de saúde pública – aconselha que as medidas excepcionais abrigadas na Lei n° 13.979/2020 continuem, por enquanto, a integrar o arsenal das autoridades sanitárias para combater a pandemia.

Consideraram que, independente da previsão temporal do Decreto Legislativo, a vigência de uma Lei apenas estará finalizada por autodeterminação ou por revogação. Tendo em vista que a atual crise pandêmica continua e não há indícios temporais para que finalize no momento, necessárias são as medidas preventivas e, assim, não há que se falar em término da lei e de suas previsões.

Por outro lado, não foi objeto da decisão do STF a questão relativa à estabilidade do empregado pessoa com deficiência, reforçando o argumento da falta de previsão legal. Todavia, fato é que a Lei 14.020/20, ao remeter ao artigo primeiro da lei 13.979/20 que traz a previsão de em que o ministro aponta uma incorreção técnica na indicação e diz textualmente que a pandemia não cessou no prazo atribuído ao DL, é absolutamente factível (como de fato vem sendo feito) a extensão da estabilidade mesmo após o marco legal estabelecido.

Isso porque, se o objetivo seria salvaguardar o emprego de uma categoria de empregados tão vulneráveis nesse momento de pandemia e essa não chegou ao seu fim, que sentido teria uma limitação temporal?

Por outro lado, a criação de estabilidades provisórias demanda vontade expressa do legislador, sendo que carece de vontade legislativa a prorrogação do estado de calamidade pública e, portanto, a estabilidade empregatícia em questão.

Para complicar ainda mais o debate, temos a ressalva expressa do STF de que os é possível que os Estados (através de suas Assembleias Legislativas) declarem por decreto a continuidade deste estado de calamidade pública. Alguns Estados, inclusive, já o fizeram, como o Amazonas Distrito Federal, Minas Gerais, Pernambuco, Piauí, Paraná, Roraima, Rondônia e Tocantins, além de diversos municípios brasileiros. A questão então seria: nesses Estados seria possível dizer, mesmo ante o fim do prazo estabelecido pelo DL 6/2020, que persiste a estabilidade dos empregados pessoa com deficiência? Afinal, se a lei já falava após a conjunção aditiva em pandemia, além do estado de calamidade, o fato de o estado de calamidade não ser reconhecimento pelo governo federal e sim localmente seria o suficiente para prorrogação automática advinda do art. 17, V da Lei 14.020/20?

Aqui enfrentaríamos um bom debate a respeito de competência legislativa federal para tratar de temas relativos ao direito do trabalho. Todavia, a lei federal existe, cabendo à lei estadual tão somente reconhecer a situação de fato, qual seja: a permanência do estado de calamidade pública decorrente da pandemia da COVID-19. Parece-nos reforçada a argumentação de quem defende a persistência do período estabilitário.

Por outro lado, remete-se novamente ao argumento de que a norma restritiva deve ser expressa. Ademias, não é razoável a existência de estabilidades regionais por Estado ou município. A orientação do legislador constituinte, ao definir a competência legislativa, foi clara em dizer que não se pode tolerar (com exceção do salário mínimo) condições laborais distintas nos diversos Estados da Federação. Se isso é uma máxima constitucional, qualquer interpretação diferente seria inconstitucional em sua origem – ou se entende que a estabilidade persiste a todos os empregados do país ou nenhum.

Para uma primeira análise do tema concluir-se que o não há estabilidade do empregado pessoa com deficiência após o esgotamento do prazo expresso previsto pelo DL 06/2020. Todavia, se questionado enquanto advogado e não professor do tema, não hesitaria em recomendar fortemente que a empresa não realize dispensa sem justa causa de empregados assim classificados até que o tema amadureça um pouco mais após o recesso legislativo e judiciário.

[1] Decisão cautelar. ADI 6.625 MC/DF. Ministro Ricardo Lewandowski. Publicação 30/12/2020. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI6.625MC4.pdf. Acessado no dia 6 de janeiro de 2021.