STF anula provas obtidas em violação à intimidade e vida privada

Ao rejeitar o recurso interposto contra decisão monocrática do Ministro Ricardo Lewandowski no HC 222.141/PR, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria, anulou as provas obtidas pelo Ministério Público do Paraná (MP-PR) no âmbito de investigação que apurava fraude no credenciamento de empresas para serviços de registro eletrônico de contratos do Detran.

No voto-vista que gerou o desempate [1], o ministro Gilmar Mendes registrou que, “segundo o Marco Civil da Internet, somente as informações relativas à data, hora de uso, duração e endereço dos IPs (registros de conexão) podem ser solicitadas pelo MP ou pela Polícia sem autorização judicial”.

Em conclusão, decidiu o STF que, “ao requerer diretamente ao Google e à Apple informações cadastrais, histórico de localização e pesquisas, conteúdo de e-mails, mensagens, fotos e nomes de contatos (preservação de dados) vinculados aos sócios de uma das empresas envolvidas”, sem a prévia autorização judicial, o MP-PR violou o direito à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem da paciente. 

As origens do direito à privacidade

Nunca é demais rememorar as origens do direito à privacidade, que se confunde com o surgimento das sociedades. Forja-se a partir da noção entre público e privado na Roma e Grécia antigas. Segundo o direito romano, a dicotomia entre público e privado tinha a ver com a separação entre o que era de utilidade comum e o que dizia respeito à utilidade dos particulares (Ferraz Jr., 1993) [2]. Na Grécia antiga, enquanto a noção de público guardava relação com o que era visível a todos em oposição ao que era secreto, a noção de privado pertencia à ordem das coisas que não se mostram em público, que se circunscrevem ao âmbito do privativo (Ferraz Jr., 1993).

As noções iniciais de público e privado e seus reflexos no direito à privacidade sofrem consideráveis mudanças com o advento da modernidade. Os conceitos são atravessados pela noção do social, comum tanto ao público, que diz respeito ao campo do político, quanto ao privado, que expressa o que é restrito ao âmbito familiar (Ferraz Jr., 1993). É nesse contexto que ganham relevo as dicotomias que conduzirão a noção de público e privado até os tempos atuais, e que surgem de um campo relacional entre Estado e sociedade e sociedade e indivíduo, conceitos que estão na raiz dos direitos humanos modernos (Ferraz Jr., 1993).

Mas foi mais recentemente que a acepção de público e privado recebeu os aspectos que a caracterizam. Segundo a noção contemporânea de público e privado, enquanto o público predicado pelo político é dominado por uma ideia de transparência e igualdade, o social-privado se insere no domínio do princípio da diferenciação, no sentido de ser diferente (Ferraz Jr., 1993), do que decorre que a individualidade privativa é regida pelo princípio da exclusividade, que, por sua vez, condiciona e designa o que vem a ser privacidade (Ferraz Jr. apud Arendt, 1993).

Exclusivo é tudo aquilo que diz respeito às opções pessoais de cada indivíduo, que se relaciona à subjetividade que forja o ser e se expressa por meio de três atributos: solidão, segredo e autonomia (Ferraz Jr., 1993). Os atributos da exclusividade vão conformar o direito à privacidade, manifestando-se, em menor ou maior grau, no direito à intimidade, à vida privada e ao nome, imagem e reputação, conformadores do direito à privacidade.

Voltando aos dados telemáticos, poderão revelar opções pessoais que se situam no plano da solidão e do segredo e que não são confessáveis a ninguém, refletindo, portanto, a intimidade; como também consistir em atributos confidenciados ou trocados entre pessoas próximas ou afins (casal, família, sócios), inserindo-se, assim, no espectro da privacidade. Daí concluir que, sobretudo na atual quadra histórica – marcada pelo uso de aparelhos eletrônicos portáteis como potencialização de nossa autonomia -, o acesso a dados telemáticos deve ocorrer mediante prévia e motivada autorização judicial.

Limites à persecução penal na investigação telemática

A decisão do STF reafirma a importância do direito à preservação da intimidade e da vida privada como barreira à expansão do poder punitivo estatal, reavivando a sujeição do poder público e de seus agentes aos limites constitucionalmente impostos ao exercício de suas atribuições.

O afastamento de dados telemáticos deve observar a reserva de jurisdição, prescindindo de prévia decisão judicial apenas e exclusivamente nas hipóteses autorizadas.

Investigar delitos e punir responsáveis são tarefas inerentes à manutenção da ambiência do estado democrático de direito. Entretanto, quando desempenhadas em violação às regras do jogo, equiparam os servidores responsáveis pela persecução aos infratores que perseguem.

Referências

[1] Os ministros André Mendonça e Edson Fachin proviam o recurso do MP para convalidar a validade das provas coletadas. Além do Ministro Gilmar Mendes, o Ministro Nunes Marques também acompanhou o voto proferido pelo então Ministro Ricardo Lewandowski, que desprovia o recurso para anular as provas.

[2] Ferraz Júnior, T. S. (1993). Sigilo de dados: o direito à privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo88, 439-459.

[3] A defesa da paciente foi patrocinada pelo advogado Daniel Gerber.