A tortura na jurisprudência do TJGO

Como o Tribunal de Justiça de Goiás tem enfrentado o tema da tortura quando atribuída a integrantes das forças policiais e praticada no ato de prisão ou em decorrência dele?

Partindo da questão apresentada, e tendo como diretriz o conceito de tortura extraído da Convenção das Nações Unidas contra a Tortura, de 1984, promulgada no Brasil em 1991 [1], procurei, por meio de pesquisa realizada na base de jurisprudência criminal do Tribunal de Justiça de Goiás, reunir julgados representativos de casos envolvendo tortura e retratar, a partir da seleção inicial, as soluções jurídicas que a Corte tem adotado [2].

De acordo com a Convenção, tortura designa “qualquer ato por meio do qual uma dor ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são intencionalmente causados a uma pessoa com os fins de, nomeadamente, obter dela ou de uma terceira pessoa informações ou confissões, a punir por um ato que ela ou uma terceira pessoa cometeu ou se suspeita tenha cometido, intimidar ou pressionar essa ou uma terceira pessoa, ou por qualquer outro motivo baseado numa forma de discriminação, desde que essa dor ou esses sofrimentos sejam infligidos por um agente público ou qualquer outra pessoa agindo a título oficial, a sua instigação ou com o seu consentimento expresso ou tácito” [3].

Ainda, segundo a Convenção, o termo tortura “não compreende a dor ou os sofrimentos resultantes unicamente de sanções legítimas, inerentes a essas sanções ou por elas ocasionados” [4].

Feitos esses apontamentos prévios, é possível perceber, inicialmente, que o TJGO adota jurisprudência restritiva ao exame de questões relacionadas à tortura atribuída a integrantes das forças policiais e praticada no ato de prisão ou em decorrência dele. A base da restrição encontra maior amparo na vedação ao reexame e valoração de fatos e provas em habeas corpus. A exemplo do que se verifica em outros julgados [5], a limitação vertical do habeas corpus é retratada no HC 5542990-63 do qual se infere ser “Inviável a análise em habeas corpus de questões que demandem exame de provas e fatos”. No caso, a alegação sequer foi enfrentada.

A alteração do título prisional também tem servido como argumento à prejudicialidade do exame de alegações de tortura e, por decorrência, à restrição ao enfretamento do tema. De acordo com o TJGO, a “conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva prejudica a tese de nulidade do ato flagrancial”, gerando efeito saneador da ilicitude (vide, entre outros [6], o HC n. 5326261-17. Na mesma linha, entende a Corte “eventuais vícios do inquérito policial, notadamente, no tangente à irrogada ilegalidade consubstanciada na obtenção de provas sob tortura, estão preclusas, não sendo capazes de contaminar a ação penal, pois o inquérito é peça informativa” (AP 0128791-35 e do HC 5113002-65).

A despeito da tendência notadamente restritiva ao tema da tortura, a jurisprudência do TJGO admite o enfretamento de alegações de tortura e o reconhecimento da nulidade decorrente, ainda que em tese. Para tanto, condiciona as hipóteses referidas à dilação probatória e à comprovação da tortura alegada, conforme se verifica, por exemplo, da AP 0132008-11 e da AP 0141377-29, entre outros julgados [7].

Ainda, também se verifica da jurisprudência do TJGO entendimento no sentido de que “eventual violência praticada por policiais no ato da prisão deve ser apurada na via administrativa” (HC 5654350-11 e outros) [8], bem como que compete à vítima da tortura a prova da alegação feita, sugerindo a “necessidade de o flagranteado relatar a ocorrência de agressão, tortura ou ameaça por parte dos policiais quando de sua prisão (RESE 5273958-67).

O tema é árido, sabemos. Porém, por todo o exposto, é possível indicar, como hipótese, que a jurisprudência do TJGO tem sido refratária ao tratamento constitucional do tema da tortura, nos termos da pesquisa. Também como hipótese, é possível sugerir que para o TJGO a alegação de tortura deve ser submetida ao juízo da custódia para que, somente após comprovada de forma irrefutável a prática do ato ilegítimo por agentes do estado – lembremos, aqui, do conceito de tortura segundo a Convenção, o assunto possa ser levado ao conhecimento da Corte.

[1] Decreto n. 40, de 15 de fevereiro de 1991.

[2] Como método, segreguei em torno de 30 dos acórdãos que resultaram de pesquisa realizada na base de busca criminal do TJGO, obtidos a partir das palavras prisão e tortura, simultaneamente. Após, examinei todos os acórdãos, sistematizando-os por tema, ementa, relator e câmara julgadora.

[3] Para ilustrar, ocorre tortura quando um agente do estado constrange, obriga, força ou coage alguém a prestar informações ou confessar a prática de crime; ou, quando abordado em “situação suspeita”, apurada a partir do “tirocínio policial”, alguém é compelido a ingressar em viatura militar e acompanhar equipe policial no curso de diligência investigativa de questionável base constitucional; ou, também, na hipótese em que, submetido a interrogatório desacompanhado de Advogado, é constrangido a ratificar declarações que não prestou, ou atestar fato que não presenciou, sob o temor ou a ameaça de ele ou familiares seus serem vítimas de violência, física, mental ou institucional.

[4] Por exemplo, não configura tortura a adequada imposição do uso de algemas, a prisão cautelar decretada dentro das hipóteses legais e, ainda, o cumprimento de pena em situação de respeito e dignidade, nos exatos limites da sentença.

[5] TJGO, PROCESSO CRIMINAL. Medidas Garantidoras -> Habeas Corpus Criminal 5542990-63.2021.8.09.0174, Rel. Des(a). DESEMBARGADOR LEANDRO CRISPIM, 2ª Câmara Criminal, julgado em 03/11/2021, DJe  de 03/11/2021); (TJGO, Habeas Corpus Criminal 5435758-63.2020.8.09.0000, Rel. Des(a). WILSON SAFATLE FAIAD, 1ª Câmara Criminal, julgado em 04/11/2020, DJe  de 04/11/2020); (TJGO, Habeas Corpus Criminal 5739716-18.2019.8.09.0000, Rel. Des(a). J. PAGANUCCI JR., 1ª Câmara Criminal, julgado em 23/01/2020, DJe  de 23/01/2020); (TJGO, Habeas Corpus Criminal 5346917-92.2020.8.09.0000, Rel. Des(a). NICOMEDES DOMINGOS BORGES, 1ª Câmara Criminal, julgado em 30/08/2020, DJe  de 30/08/2020); (TJGO, Habeas Corpus Criminal 5346917-92.2020.8.09.0000, Rel. Des(a). NICOMEDES DOMINGOS BORGES, 1ª Câmara Criminal, julgado em 30/08/2020, DJe. de 30/08/2020); (TJGO, Habeas Corpus 5092748-76.2019.8.09.0000, Rel. JOSÉ PAGANUCCI JÚNIOR, 1ª Câmara Criminal, julgado em 22/03/2019, DJe  de 22/03/2019); (TJGO, HABEAS-CORPUS 82037-34.2018.8.09.0000, Rel. DES. J. PAGANUCCI JR., 1A CAMARA CRIMINAL, julgado em 17/07/2018, DJe. 2555 de 30/07/2018); (TJGO, Habeas Corpus 5514969-22.2018.8.09.0000, Rel. JOSÉ PAGANUCCI JÚNIOR, 1ª Câmara Criminal, julgado em 14/11/2018, DJe. de 14/11/2018)

[6] TJGO, Habeas Corpus 5347815-76.2018.8.09.0000, Rel. LÍLIA MÔNICA DE CASTRO BORGES ESCHER, 2ª Câmara Criminal, julgado em 23/08/2018, DJe  de 23/08/2018); (TJGO, Habeas Corpus Criminal 5326261-17.2020.8.09.0000, Rel. Des(a). IVO FAVARO, 1ª Câmara Criminal, julgado em 27/07/2020, DJe  de 27/07/2020); (TJGO, Habeas Corpus 5640991-91.2019.8.09.0000, Rel. NICOMEDES DOMINGOS BORGES, 1ª Câmara Criminal, julgado em 19/12/2019, DJe  de 19/12/2019); (TJGO, Habeas Corpus 5502235-05.2019.8.09.0000, Rel. NICOMEDES DOMINGOS BORGES, 1ª Câmara Criminal, julgado em 11/09/2019, DJe  de 11/09/2019); (TJGO, HABEAS-CORPUS 352758-66.2014.8.09.0000, Rel. DES. AVELIRDES ALMEIDA PINHEIRO DE LEMOS, 1A CAMARA CRIMINAL, julgado em 13/11/2014, DJe 1676 de 24/11/2014); (TJGO, Habeas Corpus 5602134-10.2018.8.09.0000, Rel. Sival Guerra Pires, 1ª Câmara Criminal, julgado em 01/03/2019, DJe  de 01/03/2019).

[7] TJGO, PROCESSO CRIMINAL -> Recursos -> Apelação Criminal 0132008-11.2019.8.09.0175, Rel. Des(a). DESEMBARGADOR J. PAGANUCCI JR., 1ª Câmara Criminal, julgado em 16/03/2022, DJe  de 16/03/2022); Apelação Criminal 0141377-29.2019.8.09.0175, Rel. Des(a). DESEMBARGADOR EUDÉLCIO MACHADO FAGUNDES, Assessoria para Assunto de Recursos Constitucionais, julgado em 22/11/2021, DJe  de 22/11/2021; (TJGO, Recurso em Sentido Estrito 0039389-62.2019.8.09.0175, Rel. Des(a). NICOMEDES DOMINGOS BORGES, 1ª Câmara Criminal, julgado em 21/10/2020, DJe  de 21/10/2020); TJGO, APELACAO CRIMINAL 281567-65.2017.8.09.0093, Rel. DES. JOAO WALDECK FELIX DE SOUSA, 2A CAMARA CRIMINAL, julgado em 19/11/2019, DJe 2884 de 05/12/2019; TJGO, PROCESSO CRIMINAL -> Recursos -> Apelação Criminal 0075044-95.2019.8.09.0175, Rel. Des(a). DESEMBARGADOR LEANDRO CRISPIM, 2ª Câmara Criminal, julgado em 22/02/2022, DJe. de 22/02/2022; TJGO, APELACAO CRIMINAL 72300-67.2018.8.09.0174, Rel. DES. NICOMEDES DOMINGOS BORGES, 1A CAMARA CRIMINAL, julgado em 26/09/2019, DJe 2853 de 17/10/2019.

[8] TJGO, Habeas Corpus 5654350-11.2019.8.09.0000, Rel. NICOMEDES DOMINGOS BORGES, 1ª Câmara Criminal, julgado em 16/12/2019, DJe  de 16/12/2019); (TJGO, Habeas Corpus 5505850-03.2019.8.09.0000, Rel. NICOMEDES DOMINGOS BORGES, 1ª Câmara Criminal, julgado em 01/10/2019, DJe  de 01/10/2019); (TJGO, Habeas Corpus 5502235-05.2019.8.09.0000, Rel. NICOMEDES DOMINGOS BORGES, 1ª Câmara Criminal, julgado em 11/09/2019, DJe  de 11/09/2019); (TJGO, PROCESSO CRIMINAL -> Medidas Garantidoras -> Habeas Corpus Criminal 5294185-66.2022.8.09.0000, Rel. Des(a). DESEMBARGADOR IVO FAVARO, 1ª Câmara Criminal, julgado em 06/06/2022, DJe  de 06/06/2022); (TJGO, HABEAS-CORPUS 14487-56.2017.8.09.0000, Rel. DES. IVO FAVARO, 1A CAMARA CRIMINAL, julgado em 16/02/2017, DJe 2231 de 17/03/2017).