Acordos de Leniência e a Medida Provisória 703

No final do ano de 2015 a Presidente da República editou uma Medida Provisória, de nº 703, que, basicamente, alterou a redação da conhecida Lei Anticorrupção. Foram trinta e duas cirúrgicas modificações que permitem facilmente descortinar a raison d’être desse instrumento normativo.

De partida é preciso ter em mente que os acordos de leniência redundam, sempre, na tolerância ou na condescendência estatal em relação a determinadas condutas ilícitas. A contrapartida é o fornecimento de informações precisas, consistentes, idôneas sobre o esquema ilícito investigado que pode permitir o descortinamento de ranhuras ilegais bastante mais profundas, apenas conhecidas e “visíveis” por quem assistiu ou conhece de dentro.

As modificações podem ser estruturas em três eixos, basicamente: o primeiro diz com a competência. Conquanto pela redação original o acordo de leniência seria firmado pela autoridade de maior grau na escala hierárquica de cada órgão com atribuição, agora a competência se multiplicou no piso. Qualquer autoridade de baixo grau dos órgãos poderá formalizar acordos de leniência.

Mais que isso, pela nova redação não há necessidade de prévia notificação ao Ministério Público quando do interesse em se firmar acordos. Neste particular há um contrassenso interno que deve ser reparado. A norma estabelece que o Ministério Público deve ser formalmente notificado (ato vinculado) quando um órgão instalar processo administrativo de apuração de responsabilidade de pessoa jurídica para apuração de eventuais delitos. Mas a mesma norma permite que acordos de leniência sejam pactuados sem notificação prévia do Ministério Público, que apenas necessita ser cientificado do acordo posteriormente.

Um segundo ponto que merece atenção reside no fato de, realizado o acordo, ficam afastadas todas as restrições antes impostas no que toca ao direito de contratar ou licitar com a administração pública. Trocando em miúdos, poderá a pessoa jurídica beneficiada do acordo de leniência continuar realizando contratos e participando de licitações, não se aplicando a ela as restrições típicas de empresas jurídicas inidôneas.

Por fim, e talvez o mais relevante, importante perceber que a Medida Provisória 703 (art. 2º, inc. I) não apenas alterou a Lei Anticorrupção como também revogou na Lei de Improbidade Administrativa o § 1º, do artigo 17 que interditava, em matérias envolvendo improbidade, acordos de quaisquer natureza. Agora, por conta da natureza processual da norma revogada, até mesmo em ações em andamento será possível firmar acordos com o fim de extinguir demandas ligadas à improbidade administrativa.

O que torna a situação mais grave, neste particular, é o fato de, ao se interpretar essa revogação conjuntamente com as previsões do art. 16, § 11, da Lei Anticorrupção, poderá emergir a seguinte situação: em uma ação por improbidade administrativa movida pelo Ministério Público em que um dos co-réus seja uma pessoa jurídica, caso seja feito acordo de leniência com a participação da Advocacia Pública, mesmo sem a participação do autor – na espécie, o Ministério Público – haverá interdição não apenas processual, mas material inclusive.

Para concluir, registra-se que a Lei Anticorrupção foi alterada sem nunca ter sido aplicada na prática. No Cadastro Nacional de Empresas Punidas (CNEP) não há sequer um registro de punição, não obstante haver trinta processos em tramitação (vinte e nove deles oriundos da operação Lava Jato).

Qual a razão de ser das alterações? O tempo em breve dirá…