A multisujeição da propriedade urbana

A superação da noção absoluta do direito de propriedade, sintetizada por Léon Duguit ao estabelecer que a propriedade não é mais o direito subjetivo do proprietário, mas função social do detentor de riqueza , repercutiu em nossa ordem constitucional vigente não apenas, de início, no artigo 5º, inciso XXIII – a propriedade urbana atenderá a sua função social – mas, e principalmente, para fins de direito urbanístico, no art. 182, § 2º da Constituição da República, que obriga o proprietário urbano ao cumprimento da função social.

Fato é que, se não era novidade no direito constitucional brasileiro o atrelamento da função social como condicionante ou substrato legitimador do direito de propriedade – pois já presente na Constituição de 1934, em seu artigo 113, nº 17  – o que, inclusive, serviu de terreno para o histórico voto do Ministro Castro Nunes em acórdão publicado pelo STF em 1942, de onde ressai que a propriedade não é legítima senão quando se traduz por uma realização vantajosa para toda sociedade  – é nova a explicitação da obrigatoriedade do cumprimento da função social para as propriedades urbanas.

A pergunta que ficaria subjacente à regra seria, então, como cumprir a função social da propriedade urbana. O próprio texto constitucional pavimentou a solução ao explicitar que, cumpre a função social da propriedade urbana àquela que cumpre as obrigações estampadas no plano diretor.

É o plano diretor a norma fixadora das obrigações impostas ao proprietário urbano que servirá de parâmetro para verificação de cumprimento da função social.

Em 2001, dando cumprimento ao comando constitucional do art. 24, inc. I e § 1º, bem como art. 21, inc. XX, foi publicado o Estatuto da Cidade, que não apenas reafirmou o sincretismo de competências executivas e legislativas em nas questões urbanas, como, igualmente, demonstrou que, nestas questões, as ferramentas jurídicas são interdisciplinares, passando por mecanismos propriamente urbanísticos, como também por ferramentas financeiras e tributárias.

Não obstante, o Estatuto da Cidade, em seu artigo 39, reafirmou o protagonismo do Plano Diretor ao prelecionar que a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende as exigências fundamentais de ordenação da cidade nele estampadas.
 
O instrumento básico de política urbana é, pois, o Plano Diretor, cuja competência legislativa e executiva é municipal.

Se o protagonismo legislativo em questões urbanísticas é do município, nem de longe ele se esgota nas matérias tratadas tradicionalmente pelo Plano Diretor.
 
Compete também ao município ordenar o uso e ocupação do solo urbano e urbanizável, abrangendo o zoneamento, o loteamento, a composição estética e paisagística da cidade, o controle das construções e até mesmo requisitos estruturais, funcionais e estéticos, que, geralmente são previstos nos Códigos de Obras e suas normas complementares.

Nada interdita que todas estas matérias sejam abordadas no corpo de um único instrumento. Neste caso, o Plano Diretor abarcaria toda a regulação legislativa municipal.

Ocorre que, para além deste instrumento básico e fundamental, a propriedade urbana está sujeita a outras regulações.

Essa regulação multivetorial convergente sobre a propriedade urbana ou multisujeição da propriedade urbana pode ser analisada de duas formas.
 
A primeira, tomando em conta a competência legislativa, pode ser nominada de multisujeição legislativa vertical, pois leva em consideração o nível de abrangência da norma.

No nível mais abrangente, o federal, encontram-se, por exemplo, o Estatuto da Cidade, o Código Florestal, o Código Civil, a Lei 6.766/79 (lei de parcelamento do solo urbano), lei 11.445/07 (lei de saneamento básico), a Instrução Normativa nº 17-B, do INCRA e a Lei 11.977/99, para além do plano nacional de desenvolvimento econômico e social.
 
Todas estas normas incidem e regulam a utilização da propriedade urbana.
 
Os estados, igualmente, possuem uma competência para legislar sobre questões ligadas ao meio ambiente e, não por outro motivo, várias unidades da federação possuem seus códigos florestais, incidentes, inclusive, sobre áreas urbanas.

Igualmente compete aos estados a confecção dos planos diretores de regiões metropolitanas, aglomerados urbanos, microrregiões e do plano estadual.

Por fim, ao município não apenas o Plano Diretor, mas também a ordenação do parcelamento, uso e ocupação do solo urbano – matérias que podem ser tratadas no bojo do próprio plano diretor -, além do zoneamento ambiental, das leis orçamentárias que servirão de base financeira para a execução do planejamento formulado e das normas tributárias municipais, que também são instrumentos jurídicos tributários colocados à disposição dos municípios para a ordenação do solo urbano.

Já sob o ponto de vista material, o regramento da propriedade urbana igualmente é vetorada multilateralmente.

Incidem sobre a propriedade urbana normas que regulam privatisticamente os bens, forte o Código Civil, especialmente no Título III. Essas normas são dirigidas aos interesses individuais de seus proprietários, sendo relacionais a outros interesses igualmente privados. Da mesma forma, a lei 6.015/73, que serve em grande medida à garantia da propriedade do ponto de vista registral.

Já sob o aspecto social, uma plêiade de normas regram a propriedade urbana, afastando-a muito da noção laboratorial de propriedade – como patrimônio intangível – e empurrando-a para o lado social, impondo ao proprietário urbano obrigações e abstenções voltadas não à fruição individual de sua propriedade, mas à adequação coletiva.

Aqui uma trança normativa pode ser apresentada: Código Florestal Federal e Estaduais, Estatuto da Cidade, Lei de Parcelamento do Solo Urbano, Lei Minha Casa Minha Vida, Lei de Saneamento Básico, dentre várias outras.
 
Tudo isso demonstra que a propriedade urbana é submetida a sujeições normativas tanto dirigidas ao balizamento horizontal, vale dizer, relacional à outras propriedades, quanto a balizamentos verticais, pertinentes à relação privada com os interesses coletivos e sociais.
Estamos todos plenamente cientes disso e aptos a viver em uma cidade?

*Carlos Vinícius Alves Ribeiro, Mestre e Doutorando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo, Professor de Direito Administrativo e Direito Urbanístico, Membro do Centro de Estudos de Direito Administrativo, Ambiental e Urbanístico da USP e Promotor de Justiça em Goiás.