Queimem! Queimem!

*Rodrigo Lustosa Victor

​​“Com as faces banhadas em lágrimas e o crucifixo tocando-lhe os lábios, que ela subiu aqueles cruéis degraus até o início da fogueira… Uma baforada de fumaça ergueu-se subitamente diante de seu rosto e, por um rápido momento, ela foi tomada de terror e gritou: — Água! Dêem-me água benta! Ela externou suas últimas palavras em altos brados: “Jesus!” Um secretário do rei inglês dizia bem alto: “Estamos perdidos; queimamos uma Santa!”.  Por estas palavras, o escritor norte americano Mark Twain descreveu a execução da sentença de Joana D’Arc, personagem francesa na Guerra dos Cem Anos.

Muitos dos juízes que tomaram parte neste julgamento, realizado em 1431, nele exerceram também a função de acusadores. As chances de Joana ser absolvida, portanto, eram nulas.

A entrega das funções de acusar e julgar ao mesmo sujeito foi comum nos Tribunais do Santo Ofício, ela se inscrevia em uma lógica mais ampla, denominada sistema inquisitivo. Determinados dogmas conferiam sentido a este processo, nele o réu era idealizado como um pecador, detentor de uma verdade (verdade real) que deveria ser extraída, mesmo que pela tortura, através da atuação do “juiz” (inquisidor). Confissão e abjuração, eram o propósito dos juízes do Santo Ofício.

Os séculos, a laicização do direito e, com muito destaque às revoluções liberais, precipitaram o rompimento com este sistema de distribuição da Justiça.

A modernidade quer o “juiz sem partido”, equidistante das partes, que se recolhe aos limites de suas funções – garantir a atuação legal dos sujeitos a acusação e defesa e ao final julgar, em conformidade com o que lhe foi apresentado nos autos. Para ficar com as metáforas futebolísticas, não se concebe que o árbitro da partida seja torcedor ou participante do jogo, ele garante a partida em conformidade com as regras e declara quem a venceu. Assim também na arena do Direito Penal.

Este “novo” sistema processual – agora chamado de acusatório – foi amplamente consagrado pela Constituição Federal de 1988, porém, não se iludem velhas práticas (arraigas histórica e culturalmente) pelo império das leis, por mais veementes que sejam.

Um breve olhar sobre precedentes de nossos tribunais serve para por em evidência o fato de que práticas judiciais inquisitivas continuam a ser admitidas e aplicadas no processo penal brasileiro. Há exemplo que ilustra bem esta realidade: nossas Cortes admitem que o juiz condene o réu, mesmo quando o estado-acusação  (Ministério Público) pede sua absolvição. Isso mesmo, ainda quando “retiradas” as acusações, o juiz pode resgatá-las e condenar o (ex)acusado.

Potencializa a ilustração feita, o recente episódio protagonizado pelo Excelso Supremo Tribunal Federal. Segundo veículos de imprensa, a Suprema Corte – sem que ninguém a solicitasse – teria determinado a instauração de inquérito para apurar, dentre outros ilícitos, a prática de crimes contra a honra de Ministro da própria Casa. Neste contexto, ainda sem qualquer provocação, teria havido a determinação de quebra de sigilo de comunicação, busca e apreensão e outras medidas constritivas. Solicitado o imediato arquivamento das investigações pelo sumo Órgão Acusatório, Procuradoria Geral da República, o Eminente Ministro condutor do feito teria respondido negativamente.

Práticas assemelhas,  ainda que em escala menos exuberante, são relativamente recorrentes nos domínios do processo penal, no entanto, somente a partir da espetacularização dos casos criminais elas se tornaram conhecidas. Veio a público a figura do juiz que passa horas interrogando o réu, em busca de contradições, do mesmo modo procedendo em relação às testemunhas; que determina, sem requerimentos, a produção de provas, a decretação de prisões e que, enfim, entra em campo e participa ativamente do jogo processual. A confusão entre a figura do acusador e do julgador resta evidente.

Questões como estas há anos são debatidas pelos operadores do direito, particularmente pela Academia, Advocacia Criminal, membros do Ministério Público e Magistratura Criminal. Elas comportam numerosas chaves explicativas.

Há quem sustente tais possibilidades em termos constitucionais; existe o paradoxo do Judiciário na guarda da Constituição – o exercício do poder convida a mais poder, os juízes precisam cumprir as regras constitucionais, porém estes mandamentos limitam seus poderes; o ativismo judiciário compreende tantas vezes que os fins justificam os meios; há também aspetos culturais, fortemente enraizados, que implicam no não reconhecimento de garantias para acusados pela prática de crime.

Estas tantas hipóteses não impedem uma constatação certeira: quando se avolumam tais práticas, a defesa perde seu espaço de atuação, a Justiça pende sua balança para um dos lados, como antes as multidões aplaudem, agora com uma chuva de “likes” e os réus sobem os cruéis degraus, até o início da fogueira.

*Rodrigo Lustosa Victor é advogado criminalista, conselheiro seccional da OAB-GO e professor universitário.