Qual a razão das leis

*Marcelo Bareato 

É interessante a história brasileira, construída sobre o império de leis e formas coativas e coercitivas para implementar a ordem e o bom senso dentre os cidadãos.

Do ponto de vista prático e a história das civilizações assim demonstra, tudo começa através da feitura de leis, as quais implementam a forma coativa no ânimo do cidadão. Essa maneira de tentar impor o proceder para o bem comum, a qual chamamos coação, é entendida como o “exercer pressão psicológica ou constrangimento no indivíduo a fim de fazê-lo praticar, independente se por ação ou omissão, ato que não deseja”. Cabe aqui esclarecer que a ameaça de exercício normal de um direito e o temor reverencial não configuram hipóteses de coação.

O próximo passo, estabelecido o comportamento esperado e desrespeitada à norma, é a coerção, onde podemos inferir a repressão, proibição, impedimento, censura, freio, limitação, restrição, o uso da força.

Desta feita, a conjugação das duas formas (coação e coerção), é o meio comumente adotado nos Estados que procuram encontrar seu lugar de conforto dentre as civilizações e ditas “evoluídas”, com o que se espera que os destinatários evoluam ao ponto de entender o caminho a um futuro mais próspero e igualitário, ou seja, primeiro assustamos e depois usamos a força para tentar restabelecer a ordem e a convivência entre nossos pares.

Ocorre que no papel tudo parece funcionar perfeitamente, mas na prática, na medida em que o cidadão destinatário da ordem não entende pelo respeito ao que foi pactuado ou, o que é pior, entende por desafiar o Estado em suas determinações e formação, outra sorte não há que aplicar a punição prevista de forma legal, visando exemplificar aos demais e evitar que danos maiores aconteçam, o que pode ser um tiro pela culatra, caso não estejamos preparados para fazer com que o “castigado” adquira o valor do bem jurídico que nós, pessoas de bem, esperamos dele.

Posto o primeiro problema, outro se apresenta de forma instantânea, qual seja, o fato de que, por vezes, quem deveria cobrar a obediência, deixa de cumprir o papel que lhe cabe e passa a fazer vistas grossas, permitindo que o caos se instale.

É assim quando, por exemplo, atravessamos uma pandemia, temos as leis necessárias para obrigar a população ao uso de máscaras e a tomar as vacinas que foram devidamente testadas e nos damos ao luxo de fazer uso da Constituição Federal só para criação de leis que beneficiam o cidadão, enquanto esse mesmo cidadão, que sempre tomou as vacinas necessárias, que leva seus filhos aos postos de atendimento para o mesmo fim, que faz uso das vacinas indicadas quando resolve fazer uma viagem internacional, numa postura clara de desrespeito a norma e a situação excepcional, resolve, deliberadamente, não seguir o que fora determinado e ainda se expressa nas redes sociais com dizeres: “não aceitaremos o passaporte vacinal” ou “não usaremos máscaras para contenção da pandemia”.

Perceba que não se trata de uma postura que atinge direito exclusivamente próprio, mas que tem influência em toda a comunidade e, portanto, deve obedecer o comando normativo para salvaguarda e proteção de todos. Nesses casos e para que não restem dúvidas, cabe esclarecer a você, nosso Leitor, que temos previsão na legislação, de normas excepcionais, feitas especificamente para regular períodos como esse que tem um starte, mas que não apresenta um período pré-determinado para o seu fim. Tais normas são conhecidas como aquelas editadas para reger fatos ocorridos em períodos anormais, de calamidade pública, como é o caso da pandemia por Coronavírus – COVID-19.

Sim! Atravessamos um período de calamidade pública, o qual, por ser caracterizado como anormal, causa danos e prejuízos que implicam no comprometimento substancial da capacidade de resposta do Poder Público atingido.

Exatamente por isso e, para que tenhamos tudo por muito claro, o próprio Presidente da República, Jair Bolsonaro, declarando a pandemia como questão de calamidade pública, sancionou a lei Nº 14.217, em outubro de 2021, que dispõe sobre as medidas excepcionais para a aquisição de bens e de insumos para a contratação de serviços, inclusive de engenharia, destinados ao enfrentamento da pandemia da Covid-19.

Da mesma forma o Decreto Legislativo n.º 6, de 20 de março de 2020, dispõe: Reconhece, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020.

E nosso Código Penal, datado de 1.940, em seu artigo 3.º, dispõe: “A lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência”.

Dito isso, a discussão sobre usar ou não a máscara, tomar ou não a vacina, caso seja do interesse de nossos dirigentes, está totalmente superado e pode ser levado a efeito para obrigar o cidadão a seguir o comportamento correto para esse período totalmente excepcional, o que mostraria força e capacidade para condução, de forma igualitária, de todos aqueles que precisam passar e superar essa “fase anormal”.

Destarte e apenas de forma introdutória, ressalvados os entendimentos contrários aos quais já deixamos nossa recomendação para a leitura da legislação vigente, nosso interesse com o presente artigo é demonstrar que quando permitimos o desrespeito sem consequências, criamos, como dito acima, o caos generalizado.

Vejamos mais um exemplo do que queremos demonstrar: caso interessante ocorreu com um colega Advogado que atua na área criminal e, ao conseguir junto a uma das Varas de Execução Penal de Goiânia, Estado de Goiás, a determinação da retirada da tornozeleira eletrônica do seu cliente, viu-se obrigado a lidar com um caso inédito, o órgão responsável pela retirada do aparelho de monitoramento se negou a cumprir a ordem sob o pretexto de que não havia contingente suficiente para fazê-lo.

Ora! Vamos a análise do caso: temos uma ordem judicial, um direito constitucionalmente assegurado ao usuário, a configuração do crime de desobediência e abuso de autoridade por parte do executor da determinação, mas pasmem, o Advogado, irresignado, na tentativa de fazer valer o direito de seu cliente foi forçado a insistir junto a Vara Penal responsável pela ordem, para que, misericordiosamente, entrassem em contato com o órgão responsável pelo cumprimento da medida e de alguma forma, resolvessem o problema.

A Vara Criminal assim o fez, mandou novo ofício solicitando a mesma coisa que constava na ordem anterior, sem estabelecer, como contrapartida, a reprimenda necessária em caso de descumprimento. Sem qualquer cerimônia e ciente de que não haveria nenhum tipo de sanção, o dito órgão (responsável) manteve sua posição, obrigando o cliente a passar o final de semana com a tornozeleira, impedido de fazer as suas atividades legais, correndo o risco de (mesmo amparado pela ordem emanada da Vara das Execuções Penais por duas vezes) ser preso novamente, reconduzido ao cárcere e nele ficar recolhido por um período médio de 45 (esse é o tempo que uma Vara de Execução Penal leva, seguindo os ditames legais, para propiciar ao acusado o direito de justificar a razão de ter sido pego fora das especificações legais) dias até que fosse possível justificar seu direito e a prisão ilegal que sofrera.

Mas, qual seria a forma correta de agir? Muito simples: prever no ofício enviado, a determinação de prisão da autoridade que desrespeitou a ordem dada e o imediato cumprimento da retirada da tornozeleira. Qual o efeito dessa previsão e possível prisão da autoridade desidiosa? De forma coativa, estaríamos influenciando no ânimo dos demais funcionários do órgão responsável pelo cumprimento das ordens recebidas com a certeza de que, uma vez não cumprida a próxima ordem, a coerção pelo uso da força (prisão) seria exercida com o intuito de recobrar a norma e a aplicação do direito posto.

Percebam o efeito desestabilizador se faz em cadeia. O cliente, sem a satisfação de seu direito, entende que o advogado não cumpre com a sua obrigação. Por sua vez, que o juiz, além de lhe punir, não tem poder de mando algum. Que o executor da ordem, não tem medo de desfazer do que o judiciário determinou porque não há consequências para a sua desídia e, com isso, o apenado, que agora já tinha o direito de estar em casa sem qualquer meio de vigilância, chega à conclusão de que a Constituição e as leis ordinárias não servem para nada. Ato contínuo, se não há comando e todo o sistema é bagunçado, para que cumprir o que o juiz ordena, o que o Prefeito estabelece, o que o Governador sanciona ou o que o Presidente determina se no final das contas tudo parece não ter sentido num país onde não há leis.

Esse efeito é tão nefasto que levará à situações como a  do policial civil que bate no suposto criminoso para obter a confissão, achando que isso é perfeitamente normal; do juiz que entende que não cumprir a Constituição é um direito que lhe assiste e, por isso, aplica o que chama de moral e bons costumes independente dos efeitos que uma condenação ilegal poderá trazer para a vida do preso e sua família; do promotor que não oferta a denúncia com os requisitos mínimos estabelecidos na lei porque entende que pode fazer o que bem entender e economizar tempo cerceando o direito de defesa; do advogado que vendo o cenário acima não faz uso dos documentos e meios de defesa que seu cliente e família lhe fazem chegar às mãos porque caso seu cliente seja condenado cobrará mais para o recurso e ações constitutivas. O mesmo podemos dizer do diretor do sistema prisional que vê como viável a possibilidade de extorquir o preso para que ele mantenha sua integridade física e sexual. Fechando o ciclo, tal qual um bumerangue lançado ao vento, retornando ao preso, é fácil intuir que todo o terror vivido no sistema prisional será descontado na sociedade a qual, no seu entendimento, não fez absolutamente nada para frear esses abusos a que ele foi submetido e que lhe transformaram num monstro para se manter vivo no sistema que deveria ressocializá-lo.

Sim, meu Caro Leitor! A RAZÃO DAS LEIS, assim como diz Urs Kindhäuser, é fazer com que todos as conheçam, trilhem seus caminhos objetivando a melhor convivência, aprendam a cobrar seus direitos daqueles que, por ventura, se desviem do norte entendido como correto e aceitável, tudo para que, num futuro próximo, sejamos capazes de viver com o mínimo de regras e o máximo de comprometimento para com o Estado e as pessoas que nos cercam, alcançando o equilíbrio entre Democracia e dignidade da pessoa humana.   

*Marcelo Bareato é advogado criminalista com ênfase no Direito Penal Econômico, doutorando em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá/RJ, ocupa a cadeira de n.º 21 na Academia Goiana de Direito, professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal Especial e Execução Penal na PUC/GO, Conselheiro Nacional da ABRACRIM, Presidente do Conselho de Comunidade na Execução Penal de Goiânia/GO, entre outros (ver currículo lattes http://lattes.cnpq.br/1341521228954735).