Médicos ou deuses?

Certa feita lendo um dos mais importantes jornais do país, vejo o comentário feito por um professor de medicina da USP que assim dizia: “Quando consigo curar um paciente com câncer e, assim, salvar-lhe a vida, sinto-me como um Deus. Tenho, então, que me beliscar para me perceber humano”.

Pois bem, é de muitos conhecido, em especial, da comunidade médica em geral e mesmo de pacientes, da fé que existe nesta crença, isto é, da suposta existência do médico-Deus. Todavia, quero aqui já dizer, não sou médico, mas entendo não haver esta necessidade dos médicos se beliscarem para perceber que são humanos e falíveis como todos nós, talvez bastasse apenas serem um pouco mais críticos.

O louvável e importante exercício da medicina, por meio de profissionais sérios e estudiosos, pode prolongar a vida e promover alívios para o sofrimento de muitos, disso ninguém discorda. O problema então surge é quando nos deparamos com estes indivíduos que se acham acima do bem e do mal, atribuindo a si próprio e a ninguém mais, a cura do paciente que já estava desenganado.
            
Acontece que neste singelo texto, quero chamar à atenção para outra “categoria” de médico-deus que surgiu recentemente em nosso país, representada por profissionais arrogantes e midiáticos, donos de dogmas não fidedignamente comprovados em sua área, mas que chegam a apresentar a falsa expectativa de que a medicina poderá nos livrar de todos os sofrimentos a qualquer custo e preço.

Nessa busca incessante pelos holofotes da mídia, por prêmios internacionais e, principalmente, por dinheiro, muito dinheiro, escamoteado que o é pelo apócrifo objetivo do “bem da humanidade”, esses médicos-deuses divulgam cirurgias mirabolantes e revolucionárias até, tudo com o afã difundir a crença de que é possível um conhecimento total sobre o corpo humano e aquilo que o condiciona, contudo, sem a feitura das necessárias pesquisas científico-médicas que deveriam antes serem realizadas dentro dos órgãos competentes por esses mesmos médicos que, ressalte-se, sequer poderiam receber qualquer quantia para fazer experiência em seres humanos.

Um exemplo brutal da ação destes maus profissionais, é quando eles divulgam pseudo curas de doenças até então incuráveis, por meio de técnicas que vem realizando indiscriminadamente em seres humanos sem estarem avalizados por órgãos competentes de pesquisa para fazê-las, afirmando, mercenariamente, que são a panacéia total e derradeira para tais moléstias que, sob controle, faz com que os pacientes possam ter uma boa qualidade de vida.

Para estes médicos-deuses, se algo deu errado, é culpa do paciente, nunca deles, pois estão acima do bem e do mal, não enganam, não maltratam, não mutilam e não abandonam seus enfermos, mesmo que, frise-se, apliquem em seres humanos técnicas que utilizavam até ontem em animais, não nos olvidando de receber sempre destes seus incautos pacientes, seus polpudos honorários.

Estes médicos infalíveis, como no passado se ocuparam os sacerdotes, estão encarregados hoje de nos dizer, segundo eles pensam, o que é certo ou errado para se ter uma vida feliz, ou até de falar para o paciente que irá fazer no mesmo uma cirurgia legal, aprovada por órgãos competentes e receber por isso, quando na verdade realizará outra intervenção cirúrgica, só que esta outra não é aprovada por nenhum instituto a que este médico deveria responder, tratando-se da concretização de um crime, para dizer o mínimo, pois viola os direitos fundamentais de um cidadão, agredindo a sua dignidade como pessoa.

Resta evidente que há muito tempo não são as autoridades religiosas que ditam as regras de nosso convívio, mas também não é esta categoria de médicos, a nosso sentir, descartável, que se diz portador das verdades científicas, que deveremos ouvir sem titubear, sem questionar.

Temos que o valor do bom profissional médico está é no seu vasto conhecimento adquirido com muita dedicação, prudência e denodo pelas normas éticas, na aplicação prévia das necessárias pesquisas científicas, no respeito incondicional ao paciente que, antes de ser seu cliente, é uma pessoa que está te oferecendo sua vida, seu bem maior, para a busca do alívio de seu sofrimento.

O paciente não pode nunca ser equiparado a uma cobaia, um camundongo de laboratório, como alvitra o médico-deus, pois até ele e os demais animais que auxiliam os verdadeiros médicos cientistas em busca de curas para os males que nos afligem, tem a proteção de uma norma federal, a Lei 11.794/08, que estabelece quais os legais e corretos procedimentos que devem ser utilizados para o devido uso científico destes animais em experimentos.

Concluímos que não há dúvida de que devemos repudiar a existência do chamado médico-Deus em nossa sociedade, pois o dito progresso por ele apregoado não pode ser realizado a todo custo, ultrapassando necessárias etapas, e pior, vendendo uma ilusão. E o destino de toda ilusão nós sabemos, é ser desmascarada, pois no mundo das doenças e seus tratamentos, promessas enganosas há muito são devidamente nomeadas: charlatanismo, e uma medicina sustentada em crenças ilusórias pode estar condenada a desaparecer.

*Marcelo Di Rezende Bernardes é Advogado, Mestre em Direito, Professor Universitário e autor dos livros A Aplicabilidade das Decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Brasil, Academia Goiana de Direito e Reflexões sobre o Direito do início do século XXI.