Criminalização da homofobia: o adeus à legalidade

*Alan Kardec Cabral Jr.

O Supremo Tribunal Federal, no dia 23 de maio de 2019, formou maioria no sentido de criminalizar a homofobia e a transfobia com enquadramento, por analogia, nos tipos penais definidos na Lei 7.716/89, na ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO26).

A ADO trata-se de ação pertinente para efetivar norma constitucional em razão da omissão dos Poderes, art. 103, § 2. °, da CRFB/88.

Em síntese, os proponentes da ação buscaram perante a Suprema Corte o reconhecimento formal da existência de omissão inconstitucional imputável ao Poder Legislativo, para que este adote as providências necessárias à concretização das normas constitucionais transgredidas – quais sejam, art. 5. °, incisos XLI e XLII, da Constituição Federal:

XLI –  a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;

XLII –  a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

Em que pese a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara Alta ter aprovado Substitutivo do relator, Alessandro Vieira, ao Projeto de Lei n° 672 de 2019, que aprimora a Lei n° 7.716/89, para incluir os crimes de discriminação ou preconceito de orientação criminal e/ou identidade de gênero, a Corte Superior decidiu prosseguir no julgamento, visto que, segundo o relator, já se passaram mais de 30 anos da promulgação da Carta Política, porém, ainda, não se registrou, pelo legislativo, sanções às práticas discriminatórias em razão da orientação sexual das pessoas, a caracterizar, assim, inequívoca e irrazoável inertia deliberandi. [1]

Necessário deixar claro que a homofobia e transfobia são reprováveis e devem ser reprimidas, qualquer iniciativa nesse sentido deve ser louvada, assim como qualquer outro tipo de discriminação. No entanto, em nosso entendimento, no Estado Democrático de Direito há regras claras que devem ser respeitadas, mormente as constitucionais.

A lei 7.716/89, de 05.01.1989, preceitua no artigo 1. °, da lei 7.716/89: “serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.

Não é possível extrair desses substantivos contidos no artigo 1. °, tampouco da expressão “procedência nacional”, qualquer conteúdo que se conecte à orientação sexual ou identidade de gênero.[2]

Por evidente, tal ideia não deixa impune aquele que ofende verbalmente, agride ou mata alguém por sua orientação sexual – lésbica, gay, bissexual, travesti, transexual ou transgênero –, visto que tais condutas estão caracterizadas nos crimes contra a honra, contra a integridade física ou contra a vida,[3] respectivamente.

Embora respeitando o entendimento contrário, a extensão da criminalização feita pelo Supremo foi uma verdadeira analogia criadora de crimes (in malam partem), não há como isso negar, pois, se assim o fosse, poder-se-ia indagar: a homossexualidade seria uma raça? Uma cor? Uma etnia? Uma religião? Uma procedência nacional?[4]

Evidente que não!

Dessarte, a regente Constituição da República atribui privativamente à União competência para legislar sobre o direito penal (art. 22, inc. I), o que será exercida pelo Congresso Nacional (art. 48), pautados nos processos legislativos (art. 59 e seguintes).[5]

No século XIX, diante da expressão constitucional do princípio da legalidade, que aparece historicamente ligada à própria origem do constitucionalismo, Feuerbach estabeleceu o brocardo latino: nullum crimen, nulla poena sine lege (não há crime nem pena sem lei prévia).[6]

Nelson Hungria, magistralmente, ensinou que a lei penal é um sistema fechado, “ainda que se apresente omissa ou lacunosa, não pode ser suprida pelo arbítrio judicial, ou pela analogia, ou pelos ‘princípios gerais do direito’, ou pelo costume”.[7]

O princípio da legalidade, como visto, trata-se do mais importante instrumento constitucional de proteção individual. É ele que protege a todos, em parte, do arbítrio do Estado.

Segundo o prof. Juarez Cirino dos Santos, a analogia in malam partem, como procedido pela Suprema Corte, como método de pensamento comparativo de grupos de caso, significa aplicação da lei penal a fatos não previstos, todavia semelhantes aos previstos.[8]

A analogia, então, é resolvida desta maneira: “se o significado concreto representar prejuízo para o réu, constitui analogia proibida; se o significado concreto representar benefício para o réu, constitui analogia permitida”,[9] ou seja, a analogia prejudicial ao réu, é absolutamente proibida pelo direito penal garantidor.

Assim, é inadmissível, pela Constituição vigente – regra da reserva legal, julgador considerar crime conduta não tipificada pelo legislador. Note que o STF não ponderou princípio, mas sim regra. Quando o STF pondera regra, está derrotando-a.

Por mais nobres que sejam as reivindicações político-sociais dos defensores dos direitos das minorias (que compõem os denominados “grupos vulneráveis”), a violação de normas garantidoras para criminalizar ações discriminatórias por analogia, em afronta ao princípio da legalidade, pode ter um efeito bumerangue no futuro, pois sem legalidade tudo estará legitimado.

A lembrar: o amanhã é logo ali!

*Alan Kardec Cabral Jr. é mestrando em Direito (UFG); especialista em Direito Penal e Criminologia (ICPC); especialista em Processo Penal-(Universidade de Coimbra); advogado criminalista no escritório Rogério Leal Advogados Associados.

[1] Voto do Ministro Celso de Mello. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADO26CMVotoscomunicac807a771odoSenadoFederal.pdf. Acesso em: 26 maio 2019.

[2] BADARÓ, Gustavo. Legalidade penal e a homofobia subsumida ao crime de racismo: um truque de ilusionista. Disponível em:

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/legalidade-penal-e-a-homofobia-subsumida-ao-crime-de-racismo-um-truque-de-ilusionista-24052019. Acesso em: 26 maio 2019.

[3] Ibid.

[4] KARAM, Maria Lucia. A pretendida criminalização da homofobia e da transfobia e a destruição das normas garantidoras de direitos humanos fundamentais. 2019. p. 3.

[5] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. et. al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2015. p.

[6] Ibid., p. 201.

[7] HUNGRIA, Nélson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao Código Penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976. p. 21.

[8] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral. Florianópolis, SC: Empório do Direito, 2017. p. 23.

[9] Ibid., p. 22.