Coronavírus: a responsabilidade do Estado nas relações de emprego

*Laís Menezes Garcia

Diante da busca por alternativas de soluções econômicas para empresas lidarem com o atual cenário de pandemia, o Presidente da República Jair Bolsonaro, no dia 27/03/2020, fez uma declaração que levantou muitas polemicas no meio jurídico e empresarial: “Tem um artigo na CLT que diz que todo empresário ou comerciante que for obrigada a fechar seu estabelecimento por decisão do respectivo chefe do Executivo (…) Os encargos trabalhistas quem paga é o governador e o prefeito. Tá ok?”.

O presidente se refere ao art. 486 da CLT, que traz o que no meio jurídico conhecemos como “Fato do Príncipe”, que seria o ato da Administração Pública (podendo se referir à autoridade Municipal, Estadual ou Federal), de impossibilitar a execução da atividade do empregador de forma definitiva ou temporária, por intermédio de lei ou ato administrativo e nesse caso, o pagamento da indenização ficará a cargo do governo responsável.

Há várias ponderações a serem feitas na fala do Presidente, a primeira é que mesmo se considerarmos a aplicação art. 486, as verbas rescisórias continuariam a cargo do empregador e o único valor a ser de responsabilidade da Administração Pública, seria a indenização do FGTS, que neste caso seria reduzida de 40% para 20%.

Inicialmente, é comum a conclusão de que o art. 486 seria aplicado no atual cenário, em que várias empresas fecharam temporariamente devido aos decretos estaduais. Entretanto, deve-se analisar que não se trata de um ato discricionário do poder público, ou seja, não se trata de uma mera escolha ou de ato favorável a administração pública.

Os exemplos que comumente temos nas doutrinas referentes ao “Fato do Príncipe”, se referem à desapropriação de imóveis para construção de uma obra pública. No caso atual, não houve uma margem de escolha para os governos, por se tratar de risco iminente à saúde pública, havendo a necessidade de agir do Estado. Ressalta-se ainda que se o Estado não tomasse nenhuma iniciativa para contenção do vírus, poderia haver ações públicas cobrando indenizações do Estado pela sua omissão à saúde pública.

Outrossim, está afastada a possibilidade de aplicação do “Fato do Príncipe” estabelecido no art. 486 da CLT. Entretanto, a existência de Força Maior é inegável, e é necessária a distinção estre os dois institutos: Fato do Príncipe e Força Maior.

A Força Maior, também prevista na CLT nos artigos 501 e seguintes, é definida por todo acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador, ficando explícito o enquadramento da pandemia neste instituto.

Entretanto, para a aplicação deste dispositivo, não basta a ocorrência do fato de força maior, é necessária a comprovação de que este fato, no caso o fechamento de empresas por conta da pandemia, afetou substancialmente a situação econômica e financeira da empresa.

Comprovado o prejuízo da empresa em decorrência do fato gerador da força maior, é possível, nos termos do art. 503 da CLT, a redução geral dos salários dos empregados da empresa, proporcionalmente aos salários de cada um, não podendo, entretanto, ser superior a 25% (vinte e cinco por cento), respeitado, em qualquer caso, o salário mínimo vigente. Deve-se ainda, com a cessação dos efeitos decorrentes do motivo da força maior se restabelecer os salários reduzidos. Ou seja, a redução salarial é possível enquanto durar o fato de força maior e seus efeitos, visto que mesmo após o fim do estado de calamidade pública e o retorno das atividades, a empresa ainda poderá levar algum tempo para se restabelecer economicamente.

Observa-se que no art. 7º, VI da Constituição Federal, norma posterior aos artigos da CLT referentes à Força Maior, preceitua a irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo, outrossim, o salário só poderá ser reduzido por meio de norma coletiva.

Mesmo que a MP 927/2020, que dispõe das medidas trabalhistas para enfrentamento do período de calamidade pública causado pelo Covid-19, tenha enfatizado os acordos individuais, o seu art. 2º é claro ao mencionar que devem ser respeitados os limites estabelecidos na Constituição. Conclui-se assim, que mesmo que seja possível a redução salarial nos termos do art. 503 da CLT é indispensável que esta seja estabelecida por meio de convenção ou acordo coletivo.

Outra possibilidade elencada na CLT para enfrentamento de fato causado por força maior está elencado no art. 502 que preceitua que no caso de extinção da empresa por motivo de força maior será devida aos empregados não estáveis a indenização pela metade da que seria devida no caso de rescisão sem justa causa.

Ressalta-se ainda que o art. 502 não se refere às verbas rescisórias e sim à indenização, ou seja, a indenização do FGTS passa a ser de 20% sobre os valores depositados e o restante das verbas rescisórias devem ser pagas em sua integralidade pelo empregador.

Apesar do art. 502 mencionar a necessidade da extinção da empresa para a rescisão do contrato de trabalho nos termos mencionados, até porque deve se considerar a função social das empresas e priorizar os contratos de trabalho, mesmo em um cenário de crise, existe a possibilidade da aplicação do art. 502, ainda que a empresa não seja extinta, desde que comprovado o prejuízo econômico e financeiro da empresa, causado pelo fato gerador da força maior, que impossibilita a permanência de determinados contratos de trabalho.

As discussões aqui lançadas, desde a não aplicabilidade do Fato do Príncipe, ao reconhecimento de Força Maior, redução salarial mediante acordo coletivo e a rescisão contratual reduzindo pela metade o valor da indenização, são possibilidades que ainda estão abertas e serão de fato decididas pelo judiciário em momento posterior, quando as demandas referentes ao período de calamidade pública em que vivemos hoje chegarem às instancias superiores da Justiça do Trabalho.

A insegurança jurídica ainda existe, e, por ora, é possível apenas analisar as leis e o cenário social a fim de encontrarmos alternativas para superação de um momento histórico e sem precedentes.

*Laís Menezes Garcia, especialista em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário e advogada trabalhista no escritório Dias & Amaral Advogados Associados.