Constituição de holding e a cessão onerosa de quotas pelo valor abaixo de mercado – incidência de ITCD?

*Leonardo Scopel Macchione de Paula e Danilo Amâncio Cavalcanti

I.       DO CONTEXTO FÁTICO

Dentro de uma crescente profissionalização da atividade rural, muitos produtores rurais têm optado por retirar o patrimônio da sua pessoa física, e o transportar para uma pessoa jurídica, sendo a forma mais comum a constituição de Holdings Rurais, normalmente sociedade limitada, intitulada como agropecuária.  

De fato, a depender da situação e desde que bem feita, a holding poderá trazer inúmeros benefícios, seja por questões, dentre outras, tributárias, sucessórias ou até mesmo uma maior proteção patrimonial.

Porém, um ponto que vem chamando a atenção por parte do Fisco na constituição de referidas holdings é a venda ou doação de suas quotas e a consequente base de cálculo para incidência do imposto em questão.

Desta forma, o presente artigo, tem por objetivo abordar algumas das nuances que podem envolver a cessão onerosa de quotas sociais dentro de uma holding e eventual incidência de tributos em tal operação.

Via de regra, as holdings são constituídas através da integralização de imóveis rurais pelo seu valor histórico constante no imposto de renda, que, bem se sabe, é bem inferior ao seu valor de mercado.

Nestes casos, o produtor rural, detentor dos bens, integra a empresa como sócio majoritário, e seus herdeiros como sócios minoritários. As quotas do sócio majoritário podem ser adquiridas pelos seus herdeiros através de cessão não onerosa (doação), ou através de cessão onerosa (venda).

Quando estamos diante da hipótese de cessão onerosa (venda), incidir-se-á o IR-Ganho de Capital sobre a diferença positiva entre o valor da alienação e seu custo de aquisição, cuja alíquota varia entre 15% a 22,5%.

Doutro lado, se é cessão não onerosa (doação), incide o ITCD, cuja a base de cálculo e alíquota dependem de Estado para Estado.

Em resumo: se é venda, há o imposto de renda, se é doação, há o ITCD.

Acontece que, em que pese parecer ser simples a hipótese de incidência de um ou de outro imposto, algumas operações formalizadas vêm sendo contestadas pelo Fisco.

São as famosas “doações mistas”, que, segundo o Fisco, estão presentes quando há a venda de quotas da sociedade pelo seu valor nominal ou por um preço menor que seu preço de mercado. Exemplificamos:

‘A’, ‘B’ e ‘C’ são sócios da Agropecuária LTDA, que possui 100.000,00 (cem mil) quotas, cada qual avaliada em R$ 1,00, segundo seu contrato social. ‘A’ é detentor de 40% das quotas; ‘B’ é detentor de 30% e ‘C’ também de 30%.

O sócio ‘B’ resolve vender suas quotas ao sócio ‘C’ pelo valor de R$ 2,00 (dois reais) cada, o que totaliza 60.000,00 (sessenta mil reais). ‘C’ paga referido valor.

O Fisco contesta referida operação, pois, para ele, o valor de mercado de referidas quotas seria de R$ 10,00 (dez reais) cada e, assim, o montante que ‘C’ deveria pagar a ‘B’ seria de R$ 300.000,00 (trezentos mil reais) e não apenas R$ 60.000,00.

Portanto, essa diferença seria uma doação feita de ‘B’ a ‘C’ e, sobre ela, deve incidir ITCD.

É isso que vem acontecendo em alguns casos.

Mas a pergunta que fica é: será mesmo que essa venda das quotas pelo valor abaixo do valor de mercado, é considerado doação? Se sim, há incidência do ITCMD. Mas, caso contrário, evidente, tal imposto não deve incidir! 

  1. DA PREVISÃO (I)LEGAL PARA COBRANÇA DO ITCD EM DOAÇÃO MISTA 

A regra geral é que não há incidência de ITCD sobre transferência onerosa de quotas, mesmo que pelo valor abaixo de mercado, justamente por não se confundir com a transmissão gratuita a qualquer título, sendo esse o entendimento, por exemplo, do ACÓRDÃO Nº 0171/2015-CRF proferido pelo Conselho de Recursos Fiscais do Rio Grande do Norte.

Por outro lado, o Código Tributário do Estado de Goiás, considerada referida operação como doação e, portanto, passível de cobrança do imposto. Vejamos a previsão do art. 72-B, inc. VII, alínea a:

Art. 72-A. Caracteriza-se doação:

VIII – a diferença positiva entre o valor de mercado:

  1. a) da quota ou ação e o valor nominal expresso no contrato social ou em livro de transferência de ações;

O próprio Conselho Administrativo Tributário – CAT, em caso similar, também considera como tal. Vejamos

“Arguição de inadmissibilidade do recurso do sujeito passivo ao Conselho Superior, em relação ao pedido de nulidade por insegurança na determinação da infração. Recurso inadmitido. Pedido de diligência. Rejeitado. ITCD. Obrigação principal. Exigência do imposto em razão da ocorrência de doação de quotas de capital de sociedade empresária. Procedência total. 1) OMISSIS; 2) OMISSIS; 3) Constatação de transferência de quotas de sociedade empresarial realizada entre parentes, com cessão onerosa pelo valor nominal da quota (R$ 1,00), notoriamente inferior ao valor de mercado; 4) Ocorre o fato gerador do ITCD pela doação de quotas de capital de sociedade empresarial, quando constatado a ocorrência de transação mista, com a cessão onerosa de quota pelo seu valor nominal (R$ 1,00) e cessão gratuita (doação) em relação ao restante do valor da quota (R$ 30,19); 5) OMISSIS. (PROCESSO N° 303553371880, N° DO ACÓRDÃO: 00170/21, DATA JULGAMENTO: 28/08/2020, CONSELHEIRO RELATOR: Francisco Viana Lopes)”.

Percebe-se que no caso acima transcrito houve a efetiva comprovação do pagamento das quotas. Porém, para o Fisco, como seu valor de mercado era manifestamente superior ao valor nominal, referida diferença deveria ser considerada como doação.

Bom, mesmo que tenha previsão legal autorizando sua cobrança, tal qual deve ser observado com ressalvas.

Isso porque, conforme artigo 110 do CTN, “A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias”.

Se assim o é, o conceito de doação que, além de estar expresso constitucionalmente, é um instituto do direito privado, não pode ser alterado pela lei tributária para definir sua competência.

Em outras palavras: não pode o Código Tributário Estadual alterar o conceito e alcance de doação, que é um instituto do direito privado, para poder tributar determinada operação que, ao fim e ao cabo, não é doação.

Não é, pois, segundo a doutrina civilista, doação “é um contrato pelo qual uma das partes se obriga a transferir gratuitamente um bem de sua propriedade para patrimônio de outra”[i] [g.n].

Assim, quando há a transferência de bens ou vantagens, de forma gratuita e por mera liberalidade, a outrem, a doação estará presente.

Dito isso, pergunta-se: se houve o efetivo pagamento das quotas, mesmo que por um valor abaixo de mercado, há gratuidade? Certamente que não!

Ah… mas e a doação mista?

Trata-se de tema muito discutido no âmbito doutrinário. Há aqueles que defendem que a doação mista deve ser separada em duas partes, a onerosa e a gratuita, e, partindo dessa premissa, poderíamos defender a tributação do ITCD sobre a parte “gratuita”, que é a diferença positiva entre o valor vendido e o valor de mercado.

Entretanto, cada caso concreto deve ser analisado em apartado, pois, o que prevalecerá é o animus donandi. Isto é, há a intenção de doar? E se foram as circunstâncias do negócio e das negociações, das quais resultaram em um preço abaixo de mercado? É proibido assim proceder?

Evidente que não, principalmente em tempos atuais, onde muitos entram em dificuldades financeiras e necessitam “liquidar” seu patrimônio.

Ademais, conforme regra do artigo 112 do CC/02: “nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem”.

Portanto, se a intenção do vendedor não foi de doar e, sim, vender, é isso que deve prevalecer, o que tornaria a cobrança de ITDC em doações onerosas, manifestamente ILEGAL. 

*Leonardo Scopel Macchione de Paula é advogado tributarista e do agronegócio, sócio do Macchione & de Paula Advogados Associados.

*Danilo Amâncio Cavalcanti é advogado agrarista do DAC Advocacia, localizado em Palmas (TO), e procurador do Banco da Amazônia desde 2013.