A possibilidade da recuperação judicial dos clubes de futebol, com o advento da Lei 14.193/2021

*Filipe Denki e Nathalia Machado

No dia 06 de agosto de 2021, foi sancionada a Lei n° 14.193, que versa acerca da instituição da Sociedade Anônima do Futebol (SAF), clube-empresa, dispondo sobre as normas de constituição, compliance, recursos para o financiamento da atividade futebolística, tratamento dos débitos das entidades de práticas desportivas e regime tributário específico.

Em virtude da função social dos clubes de futebol, a Lei 14.193/21 visa viabilizar a subsistência dos clubes esportivos, que possuem passivos milionários e que, com a superveniência da crise causada pandemia da COVID-19, tiveram sua situação agravada.

Com a transformação dos clubes em empresas, a norma possibilita abertura de pedidos de recuperação judicial para negociar as dívidas na Justiça.

A maioria dos clubes hodiernos foram constituídos sob a forma de associações, isto é, pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos, ao passo que um dos elementos de empresa é o exercício de atividade econômica, isto é, com intuito lucrativo e, em regra, de acordo com a Lei 11.101/05 (Lei Recuperação de Empresas e Falência), somente é possível a recuperação judicial para empresário e sociedade empresária.

Antes da referida lei havia uma discussão acerca da legitimidade de os clubes de futebol requererem a recuperação judicial, uma corrente, mais conservadora, positivista e literal, defende que somente as entidades desportivas que se constituírem sob a forma de sociedade empresária podem postular recuperação judicial.

Isto porque os clubes de futebol são, predominantemente, associações civis e por sua vez a lei de falência e recuperação de empresas (Lei 11.101/05) estabelece que a recuperação judicial é aplicável tão somente ao empresário e à sociedade empresária.

Porém, a segunda corrente, mais principiológica, sistemática e teleológica, entende ser possível juridicamente entidades desportivas, constituídas como associações civis sem fins lucrativos, postularem recuperação judicial, na forma da Lei 11.101/05, invocando a não taxatividade do art. 2° da LRE e defendendo a aplicação da LRE aos demais agentes econômicos, ou seja, sociedades empresárias de fato.

É o caso do clube Figueirense, que em março, foi o primeiro clube a ter legitimidade para pedir recuperação judicial. O desembargador Torres Marques, do TJ/SC, reconheceu a legitimidade do Figueirense Futebol Clube para buscar recuperação judicial. Para o magistrado, o fato de o clube ser classificado como “associação civil” não o impede de buscar a recuperação judicial, já que as atividades desenvolvidas pelo time constituem típico elemento de empresa. Foi a primeira possibilidade de recuperação judicial de clube de futebol do Brasil.

A Lei 14.193/21 prevê a faculdade do clube ou pessoa jurídica original adimplir suas obrigações diretamente aos seus credores mediante do Regime Centralizado de Execuções ou pela recuperação judicial e extrajudicial, conforme a lei 11.101/05.

No Regime Centralizado de Execuções o clube ou pessoa jurídica original concentrará em um único local (juízo) através de concurso de credores as execuções, as suas receitas e os valores, bem como a distribuição desses valores aos credores em concurso e de forma ordenada.

O clube de futebol que requerer a centralização das suas execuções terá o prazo de até 60 (sessenta) dias para apresentação do seu plano de credores, podendo o Poder Judiciário conceder o prazo de 6 (seis) anos para pagamento dos credores.

Se o clube ou pessoa jurídica original comprovar a adimplência de ao menos 60% (sessenta por cento) do seu passivo original ao final do prazo de 06 (seis) anos, poderá obter a prorrogação do Regime Centralizado de Execuções por mais 4 (quatro) anos.

Na hipótese do clube eleger a recuperação judicial como meio de elidir seu passivo, este gozará de legitimidade para requerer a recuperação judicial e extrajudicial a partir do momento em que se transformar em sociedade na anônima de futebol (SAF).

Na recuperação judicial o clube de futebol fará a declaração de suas dívidas e de seus credores, apresentará um plano de recuperação judicial (renegociação de dívidas) que será analisado pelos credores que poderão aceitar, rejeitar ou modificar o mesmo, havendo aprovação (acordo) este será homologado pela justiça.

Uma inovação trazida pela lei do clube empresa que é imprescindível à reestruturação de dívidas ou recuperação judicial são os recursos financeiros para essas operações, através do financiamento da sociedade anônima de futebol, que ocorre por meio de emissão de debêntures –fut, que consiste em um título de crédito utilizado pelas sociedades anônimas para captação de crédito no mercado.

Recentemente, o clube Cruzeiro contratou a empresa de investimentos XP para a analisar a captação desses recursos e a viabilidade de transformação do clube em sociedade anônima de futebol.

Já os clubes Vasco da Gama e Portuguesa já propuseram o regime centralizado de execuções com base na noviça legislação, sendo que o clube paulista conseguiu a programação do prazo para pagamento de suas dívidas para 06 (seis) anos.

Considerando a atividade desenvolvida pelos clubes, que passou, mais recentemente, por um processo de mercantilização, tornando-se verdadeira atividade mercantil, oportuna foi a lei que criou o clube-empresa possibilitando a renegociação de suas elevadas dívidas, seja através do regime centralizado de execuções ou pela recuperação judicial ou extrajudicial.

*Filipe Denki é especialista em Direito Empresarial e Advocacia Empresarial pela Universidade Anhanguera. Presidente da Comissão de Recuperação de Empresas e Falência da OAB/GO. Membro Consultor da Comissão de Recuperação de Empresas e Falência do Conselho Federal da OAB. Membro dos institutos de insolvência empresarial TMA, IBAJUD, INSOL e IBR. Professor de Direito da Insolvência na Escola Superior da Advocacia – OAB/GO e na Escola Superior da Magistratura do Estado de Goiás. Árbitro da Câmara de Mediação e Arbitragem da Associação Comercial e Industrial do Estado de Goiás – CAM/ACIEG e do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem – CBMA. Árbitro e Coordenador do Núcleo de Reestruturação e Insolvência Empresarial da Câmara de Mediação e Arbitragem Especializada – CAMES. Palestrante em diversos eventos e escritor de artigos sobre a área de insolvência. Sócio do escritório Lara Martins Advogados.

*Nathalia Machado é graduanda em Ciências Jurídicas na Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). Pesquisadora científica acerca do instituto de recuperação judicial e falência. Estagiária no núcleo de recuperação judicial e falência do Lara Martins Advogados. Estagiária na Procuradoria da Fazenda Nacional em Goiás. Participante convidada da Comissão de Recuperação de Empresas e Falência da OAB-GO. Diretora de ensino na Liga de Estudos em Direito da PUC-GO. Monitora da matéria de Direito Empresarial na PUC-GO.