A necropolítica e o conceito de segurança humana

*Marcelo Bareato 

Vivemos num mundo de várias transformações, onde o poder mudou durante os séculos e com isso, os indivíduos foram influenciados em seus discursos, na formação de dados para identificação de problemas, nas pandemias, nas relações sociais, no critério de aferição de direitos e deveres.

A revolução industrial (período compreendido entre 1.760 a 1.840), foi, sem dúvidas, um marco para a mudança nos discursos, especialmente, daqueles que governam.

Essa mudança se acentua ainda mais, na medida em que entendemos que, “o poder opera de modo difuso, capilar, espalhando-se por uma  rede social que inclui instituições diversas como a família, a escola, o  hospital, a  clínica. Ele é, por assim dizer, um conjunto de relações de força multilaterais” (Foucault, 1999).

Michel Foucalt com sua teoria do biopoder, foi fonte inspiradora para que Achille Mbembe, filósofo camaronês, em 2001, criasse a teoria da Necropolítica, a qual tem por direcionamento o “uso do poder social e político para decretar como algumas pessoas podem viver e como outras devem morrer, ou seja, na distribuição desigual da oportunidade de viver e morrer no sistema capitalista atual” (Mbembe, 2003).

Os dois filósofos, têm muito a acrescentar nos dias de hoje, notadamente, quando lidamos com o “saber” usado no controle das aglomerações, das transformações dos espaços públicos, da manutenção da paz, das epidemias,  da organização econômica, na organização das cidades e suas estruturas.

Dito isso, Caro Leitor, as ideias de ameaça, de medo e ódio, de purificação da sociedade através de escolhas políticas, da supremacia de um grupo sobre o outro, ideias de Foucalt, nunca estiveram tão na moda como nos dias atuais.

É importante que percebamos que, por meio do discurso Estatal, tornam-se aceitáveis a rejeição, a expulsão e até mesmo a aniquilação de grupos com a finalidade de alcançar objetivos, validando políticas cruéis que incluem a segregação, a inimizade, a marginalização de grupos através de narrativas como “algumas pessoas vão morrer, faz parte da pandemia”, “com a alta da criminalidade, algumas vidas não serão poupadas em prol do bem comum”, “fora PT e sua corja de bandidos”, “Bolsonaro genocida”, “Bolsonaro mito”, “que os presos morram de Covid-19, mas que as vacinas sejam aplicadas na comunidade de bem”.

Essa banalização de ideias, entendimento comum perante os cidadãos, nada mais é do que uma das mais cruéis formas de governo, que busca no autoritarismo e na formação da intolerância entre seus comandados, passar a ideia de que para que tenhamos um país melhor é necessários fazer escolhas como  a Constituição da República ou a moral, o armamento ou a morte, a ruptura entre família e amigos ou a corrupção, a escolha entre partidos políticos (e não políticos que compõem os referidos partidos) ou ser comandado por “bandidos”, entre um STF seguidor das leis ou criador de conceitos morais e aplicador da opinião pessoal de cada ministro.

Nunca tivemos tantas mortes por intolerância, tantos julgamentos baseados apenas na opinião dos juízes (quando o correto seria seguir a lei e a Constituição Federal), jamais foram feitas tantas inimizades através dos grupos sociais. Nossos presídios estão fechados para quaisquer vistorias e os presos morrendo baleados, sendo torturados, tendo suas vidas ceifadas pela COVID-19.

Há tempos, em nossos artigos, fazemos questão de identificar pontos sensíveis na estruturação ou desestruturação do Estado Democrático de Direitos, indicando a você, nosso Leitor, que o único caminho para que tenhamos  a perspectiva de um Brasil melhor é a cultura jurídica.

Essa cultura passa, necessariamente, por entender que a aplicação de certas “filosofias governamentais”, apenas serão quebradas quando tivermos a sensibilidade para perceber e identificar, as assertivas voltadas diretamente a manipulação dos agentes sociais, na desconstrução de boas práticas para a garantia da dignidade da pessoa humana e reconhecimentos de direitos a todos, sem distinção de classe social, religião, opção política ou etnia.

É necessário que entendamos, de uma vez por todas, que, não é sem razão de ser que, em 1994, com o nome de Nuevas Dimensiones de la Seguridad Humana, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), cunhou um conceito transdisciplinar para enfrentar esse tipo de “desgoverno”, ampliar o que, até então se entendia por desenvolvimento humano, segurança e direitos humanos.

A Segurança Humana é, pois, um conceito que tem por principal objetivo proteger e garantir três liberdades essenciais aos indivíduos e as comunidades: a liberdade de viver sem temor, a liberdade de viver sem carência e  a liberdade para viver com dignidade.

Destarte, tratou a ONU – Organização das Nações Unidas, de estabelecer um conceito onde o ser humano prosperasse. Visar o desenvolvimento humanos entendendo as necessidades das pessoas e não dos governos. Proteger a dignidade através dos direitos humanos e reconhecer que a origem da  violência está na privação dos direitos e necessidades básicas e que esta privação é a fonte para o sentimento de insegurança e medo (mais informações sobre segurança humana acesse www.undp.org).

Percebam que falamos nesse artigo de coisas totalmente dissociadas. De um lado a necropolítica que destrói a perspectiva de uma vida com dignidade e se põe a serviço dos interesses de governantes inescrupulosos, manipuladores e que buscam o controle da sociedade através da intolerância. De outro, a segurança humana conceito criado para que tenhamos independência, respeito e prosperidade, forjando governos que se baseiem única e exclusivamente nos pilares da Democracia que assegura a dignidade de seus cidadãos.

É, portanto, de suma importância que reflitamos sobre essas duas realidades, esses dois extremos, e façamos a escolha sobre qual deles queremos empenhar nossa solidariedade. Se o que nos interessa é mesmo manter esse regime de apartheid, guerreando sobre ser correto usar máscaras ou não usar; se a cloroquina é melhor que a vacina; se o Estado Democrático, eleito pelos brasileiros como forma de governo, deve continuar se esfacelando dia a dia, sem que percebamos a ruptura causada pela NECROPOLÍTICA e seus adeptos ou se faremos um mutirão pela educação, pela cultura jurídica, pela vontade de alcançar uma vida digna e com representantes que respeitem os direitos e garantias fundamentais sem distinção de ser humano para ser humano, fazendo valer nosso direito enquanto cidadãos em prol da SEGURANÇA HUMANA.

Marcelo Bareato é doutorando em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá/RJ, ocupa a cadeira de n.º 21 na Academia Goiana de Direito, professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal Especial e Execução Penal na PUC/GO, Advogado Criminalista, membro da Comissão Especial de Segurança Pública da OAB Nacional, Conselheiro Nacional da ABRACRIM, Presidente do Conselho de Comunidade na Execução Penal de Goiânia/GO, Presidente da Comissão Especial de Direito Penitenciário e Sistema Prisional da OAB/GO, entre outros (ver currículo lattes http://lattes.cnpq.br/1341521228954735).