A inconstitucionalidade do conceito de família no Projeto de Lei 6583/13 (Estatuto da Família)

advogada LiseA Comissão do Estatuto da Família, em sessão bastante tumultuada, aprovou no último dia 24 de setembro, em caráter conclusivo (segue direto para o Senado, sem passar por votação no Plenário) o Projeto de Lei 6583/13, que estabelece políticas públicas e suas diretrizes voltadas para a valorização da família. O ponto da discórdia se encontra em seu artigo 2º, que define família como “o núcleo social formado a partir da união de homem e mulher”.

A Comissão, composta majoritariamente por deputados evangélicos fundamentalistas, quer definir um conceito escuso de família, estabelecendo um único padrão, deixando marginalizadas outras constituições familiares, na tentativa de impor valores que são estranhos à própria finalidade da família.

Bem, se esse é o conceito de família que o estatuto visa instituir, então eu posso dizer que nunca tive família. Fui criada por minha mãe, minha avó e meu tio, que me passaram valores e princípios, nos quais pauto minha vida até hoje. E posso dizer ainda que fui testemunha de “órfãos” de pai e mãe vivos e héteros, abandonados moral e intelectualmente, que se comportavam de maneira indecorosa, muito distante do pode ser considerado como familiar.

A discussão mais evidente é sobre os efeitos da aprovação do Estatuto em relação a união homoafetiva. Porém, o Estatuto, se sancionado, põe em insegurança jurídica não somente aquelas famílias formadas por casais de mesmo sexo, mas todas as outras que não se enquadram no conceito estipulado pela Comissão, tais como crianças adotadas por pessoas solteiras, sobrinhos criados pelas tias ou tios, netos criados pelos avós, afilhados criados por padrinhos e as demais formações familiares que hoje correspondem cerca de 50,1% dos domicílio dos brasileiros, conforme o último censo demográfico.

No tocante aos direitos civis, podemos citar além da adoção de crianças por casais homoafetivos, comprometerá direitos como pensão por morte, herança, inclusão de dependentes em assistência médica, clube, associações, imposto de renda. Estes direitos serão destituídos não só no que concerne a casais do mesmo sexo, mas a qualquer tipo de família que não se “enquadrar” no conceito abalizado.

Com a leitura atual do projeto, os parlamentares ignoram que o tema do conceito de família já está amadurecido em termos jurídicos pelas decisões do STF, que reconhecem a união estável homoafetiva e todos os seus efeitos civis, desde 2011, sendo norteada pelo respeito às diferenças e a vedação à discriminação em razão de etnia, religião ou orientação sexual.

Estão querendo institucionalizar o conceito de família, adentrando nas relações privadas, disseminando preconceito e discriminação. A palavra família pressupõe relação de afeto, carinho, amor e respeito. Aprovar o Estatuto é negar proteção às demais formações familiares. É dizer que o conceito definido é o único que merece investimento das políticas públicas.

Coincidência ou não, a referida votação do Estatuto da Família foi antecipada e realizada justamente na semana em que o Presidente da Casa, deputado Eduardo Cunha tornou-se alvo de investigação de inquérito que apura esquema de corrupção pelo STF. Diante de tamanha repercussão da aprovação do Estatuto, o foco da discussão foi desviado, abafando o episódio de corrupção envolvendo o referido parlamentar.

Com a insegurança gerada pela aprovação do projeto, indaga-se sobre o que acontecerá se o mesmo seguir sem modificações e for sancionado? O STF indubitavelmente declarará como inconstitucional a lei no que tange à categorização de família e não surtirá nenhum efeito jurídico. Todavia, garantirá alguns votos aos parlamentares de indisfarçável ignorância.

É imperioso ressaltar que o Brasil não tem tradição histórica em assuntos relacionados a direitos humanos e das minorias. Podemos citar três exemplos desse atraso muito evidentes: nosso país foi um dos últimos a acabar com a escravidão, tendo a Princesa Isabel perdido a sua coroa pela luta da abolição; somente após ser denunciado e condenado por negligência na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o Brasil foi forçado a reconhecer a vulnerabilidade da mulher e a necessidade de sua proteção diferenciada em casos de violência doméstica, culminando na edição da Lei Maria da Penha; e ainda, o reconhecimento da união homoafetiva, após muitos anos de luta e litigância, ocorreu somente no ano de 2011.

Certo é que, lentamente, os direitos da minoria vem sendo reconhecidos, e se adequando à realidade contemporânea. Em virtude disso, a aprovação de um Estatuto com uma acepção retrógrada causou tamanha perplexidade. Episódios como esse, de consagração ao preconceito, reúnem cada vez mais provas de que o mundo realmente deveria ter acabado em 2012. A sociedade estaria no lucro, só de não precisar ouvir discursos reacionários de parlamentares sem instrução, que atassalham os direitos fundamentais estabelecidos pela Constituição.

*Lise Sepúlvida Costa Póvoa França é advogada Empresarial e consultora em Licitações em Goiânia-GO.