A crise no Direito Penal na pós-modernidade

Amadeu de Almeida Weinmann

Falar sobre a crise do direito penal no período da chamada pós-modernidade é um assunto interessante, desde que entendamos o sentido filosófico e científico daquilo que se chama de pós-modernidade.

Devemos, pois, nos situar e entender o período antecedente, e sabermos o que é, e o que representou o período que se convencionou denominar modernidade. O marco histórico a caracterizá-la foi a mudança de um estilo de vida, de costumes ou de organização social, surgido na Europa a partir do século XVII e que devido a sua influência veio a se tornar mundial.

O florescimento do enciclopedismo, filosofia das Luzes difundida a partir do século XVIII, pregava o desenvolvimento moral e material do homem pelo conhecimento, com movimentos intelectuais, literários e artísticos, aliados a alicerces aos planos econômicos, ligadas ao advento da máquina a vapor que impulsionou o capitalismo.

No plano das ideias, pregava o desenvolvimento moral e material do homem pelo conhecimento. Se apresentava carregada de ambiguidades, ao mesmo tempo em que oferecia segurança, obsequiava também com perigos.

Quem oferece confiança, oferece risco.

Foucault em memorável palestra pronunciada em 1983 no Collège de France marca o nascimento do discurso filosófico da modernidade, no ano de 1784, ano em que Kant tornou público seu ensaio “O que é o Iluminismo” no qual apresentava a interrogação se sobre si mesma e sobre a atualidade. Mas a obra mais caracterizadora da nova era, sem dúvida foi a sua Crítica da Razão Pura.

A partir daí a atualidade se transforma em objeto de tematização autônoma, permitindo-se o abandono das verdades eternas.

A sociedade se vê impulsionada por um ritmo vertiginoso de mudanças onde o avanço da intercomunicação punha em conexão com diferentes partes do globo, pelo desenvolvimento do telégrafo, mais tarde, a telefonia e a depois o rádio.

As ideias de Karl Marx representavam o primeiro passo relativo à crítica ao capitalismo crescente que, pelo desenvolvimento da máquina, ia diminuir o mercado de trabalho, sugerindo a socialização do capital.

Duas guerras mundiais interferiram, fundamentalmente, nos critérios sociais e morais que caracterizavam a modernidade. A segunda guerra, especialmente, fez com que a sociedade mudasse fundamentalmente.

A ida do chefe de família para o campo de batalha, obrigou a ida das mulheres à luta, substituindo os homens nas fábricas, tirando-as do contato direto com os filhos, quebrando um vínculo milenar da educação matriarcal.

Com isto houve o abandono daquele rigorismo educacional que se manifestava no sistema educacional familiar que, de moderno não havia nada. Os próprios menores tiveram que ir à luta, abandonando o lar e com isso, fazendo surgir os primeiros sinais de independência filial.

Surgem então, os primeiros sinais da quebra da obediência hierárquica tão bem simbolizada no respeito e obediência à autoridade, representada pela organização familiar.

A música, clássica por excelência, passa a obedecer um ritmo alucinante e as crises traumáticas dos destroços da guerra fazem com que a busca de alucinógenos não mais se restrinja aos poetas como Baudelaire e artistas vizinhos do Sacré Coeur em Paris.

Os costumes vão mudando e nisso têm influência fundamental, os músicos, o teatro e o cinema. “Juventude Transviada” e James Dean, “Sindicato dos Ladrões” e Marlon Brando, e tantos outros filmes que mostravam o encantamento dos “transviados” não nos esquecendo das atitudes comportamentais dos “Beatels”.

Tudo isso veio a modificar os costumes criando uma nova era que se convencionou chamar de pós-modernidade.

Em suma, o comportamento da época passou a implicar, essencialmente, na “profanação do sagrado”, com a desvinculação com o passado e antes e acima de tudo, com a morte do “tradicional”.

Ainda que muito se tenha a pós-modernidade a partir da década de 1960, na realidade ela tem origens bem anteriores. Mas, fundamentalmente, essa é a sequência que nos leva a meditar sobre a criminalidade nos dias atuais.

É claro que como elemento fundamental dos elementos acima enumerados, o problema social veio marcar, o comportamento dos homens em sociedade.

O Direito Penal como trata com o problema jurídico do comportamento social, que vinha já sofrendo com as mudanças de costumes, passou a se ver fracassada ante o crescente e incontrolável aumento da criminalidade.

Surgem as experiências, quase todas fracassadas de combater a criminalidade com medidas mais vigorosas. Alguns slogans passam a viger como soluções milagrosas: “punição máxima e tolerância zero”.

Aumento de penas nos elencos dos códigos penais. Entre nós a teoria dos crimes hediondos. Prisão perpétua e pena de morte voltam a ser ventiladas.

Surge, então, nos Estados Unidos, na década de 80, a teoria da vidraça quebrada, apresentada pelos cientistas políticos americanos James Q. Wilson e George Kelling.

Apregoavam eles que se uma vidraça quebrada em um edifício não fosse de logo reparada, a aparência de abandono e descaso iria fazer com que os passantes se sentissem encorajados a quebrar outras vidraças, de forma que, em breve, todas janelas do edifício estariam também quebradas.

Surge, então, a teoria da repressão imediata e severa especialmente para as infrações menores acontecidas na via pública. Exige-se a tolerância zero para com qualquer tipo de violação da lei.

Imaginam que o desencadeamento destas medidas restabeleceria nas ruas um clima de ordem. Quer dizer: ao se prender o pequeno infrator cessariam os grandes crimes, inibindo aos praticantes das infrações de maior gravidade.

Rudolph Giuliani, Prefeito de Nova York inspirado nas idéias de Wilson e Kelling adotou, no início da década de 90 materializando, assim, a teoria da vidraça quebrada,  modalidade de policiamento de tolerância zero

Embora tenha se mostrado efetiva por um breve período de tempo, esta modalidade de policiamento revelou-se impossível de ser sustentada por períodos mais longos, por razões orçamentárias e sociais.

Além disso, como o foco da tolerância zero estaria voltado para infrações contra a “qualidade de vida” ou a “ordem pública”, nada valeu.

Nos lugares onde foi adotado, provocou a redução do orçamento destinado a outras áreas, como por exemplo, aos programas de combate à violência doméstica e aos crimes de colarinho branco, etc..

Isso terminou por criar dificuldade para conseguir emprego àqueles que apresentavam algum histórico criminal leve após a implantação da tolerância zero, criando a quase necessidade de envolvimento em atividades ilegais.

Notou-se, por final que o maior impacto do problema se dava nas minorias raciais e sociais, levando à marginalização dos indivíduos que pertencem a esses grupos.  O rigorismo demonstrou-se ineficaz no combate à criminalidade.

Propondo como tema uma nova visão sobre a modernidade, voltada à fluidez das relações, no individualismo pregando o dinamismo,   Zygmunt Bauman norteia seu tema que denominou “Modernidade líquida”. Líquida porque fluída, fluída porque flexível, flexível porque fácil de ser amoldada.

Questiona o tema da liberdade como real objetivo almejado, indagando: “A libertação é uma bênção ou uma maldição? Uma maldição disfarçada de bênção, ou uma bênção temida como maldição? ”

Ele mesmo responde: “A verdade que torna os homens livres é, na maioria dos casos, a verdade que os homens preferem não ouvir. ”

Segundo sua interpretação, esta sociedade que ele chama de simbiótica, entre a máquina e o homem, entre a comunicação e a globalização, entre a liberdade e a segurança, esta sociedade líquida optou pela segurança. “Comunidades de carnaval’ parece ser outro nome adequado para as comunidades em discussão.

Tais comunidades, afinal, dão um alívio temporário às agonias de solitárias lutas cotidianas, à cansativa condição de indivíduos de jure persuadidos ou forçados a puxar a si mesmos pelos próprios cabelos.

Comunidades explosivas são eventos que quebram a monotonia da solidão, cotidiana, e como todos os eventos de carnaval liberam a pressão e permitem que os foliões suportem melhor a rotina que devem retornar no momento em que a brincadeira terminar.

E, como a filosofia, nas melancólicas meditações de Wittgenstein, ‘deixam tudo como estava’ (sem contar os feridos e as cicatrizes morais dos que escaparam ao destino de ‘baixas marginais’) ”

De um lado para o outro se jogam os doutrinadores, todos eles acreditando que a solução da criminalidade está no direito penal.

No atual contexto brasileiro, de um Estado Democrático de Direito, garantista por excelência, o mais coerente sem dúvida seria partir para um direito penal mínimo.

Este Direito Penal mínimo tem que ser assentado nas máximas garantias constitucionais, tais como: o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da intervenção mínima, princípio da ofensividade, princípio da insignificância, princípio da legalidade e tantos outros.

Haveria de se pensar num direito penal baseado num direito econômico e social máximo, com a possibilidade de se ter, forte no desenvolvimento econômico, a perspectiva de um país mais rico.

Note-se que países orientais como China, Coreia e até a Índia tem um crescimento de 12 % ao ano, quando nós nos orgulhamos de projetar para um desenvolvimento de 3% do nosso PIB.

CONCLUSÃO: O mundo está doente. A sociedade está gravemente enferma. As autoridades estão negando a existência da doença. E, por estarem negando, fazem diagnósticos inadequados, criando falsos prognósticos, geradores de uma equivocada terapêutica.

E a doença em vez de ser curada, se vê agravada.

Não há como diminuir a criminalidade, se a relação entre uma proposição [combate] e sua negação [não combate], resulte do fato de que se constate que, se a primeira premissa for falsa, a segunda será, obrigatoriamente, verdadeira.

A tese falsa torna a antítese verdadeira.

É cartesiana a conclusão.

Resultado: não estamos combatendo, adequadamente, a criminalidade. Tenta-se, de há muito, combatê-la com aumentos de pena, prisões perpétuas, ou até pena de morte.

Fala-se em criação de novos presídios. E a criminalidade continua aumentando, tanto em quantidade quanto em qualidade.

O não combate tornou-se uma verdade.

Acostumamo-nos a racionar com a lógica do combate às doenças. Como lá, aqui, no combate ao crime, há que se diagnosticar bem. Depois, saber se o problema é endêmico ou simples caso isolado [que, se maltratado, pode evoluir se disseminando para o âmago social].

No nosso caso, sem dúvida que se trata de uma endemia, já que assola e aterroriza todo o país. O diagnóstico parece não ser o certo. Para se chegar a esta constatação, há que se perguntar se a terapêutica que se está usando para combater a moléstia está dando resultado satisfatório.

A doença está sendo debelada?

A resposta verdadeira é um simples e vigoroso não! A doença não está sendo debelada. Ao contrário, está se agravando.

Então, ante o resultado do raciocínio desenvolvido por Descartes, se tem que concluir que, se a terapêutica está sendo inútil, é por erro de diagnóstico e, evidentemente, a escolha da terapêutica é errada.

Lê-se nos jornais, ouve-se nas rádios e vê-se nas televisões, que o governo mandará ao Congresso Nacional um projeto de lei aumentando o elenco das leis penais.

E daí? Tudo inútil! Que fazer? O que é importante:

O Bom Direito e a Bondosa Justiça!

*Amadeu de Almeida Weinmann é advogado criminalista, pós-graduado em Direito Penal, membro do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, Delegado Regional do Instituto dos Advogados Brasileiros do Rio de Janeiro, fócio fundador da Comunidade de Juristas de Língua Portuguesa (CJLP) Lisboa, condecorado com a Medalha Oswaldo Vergara por serviços prestados a advocacia gaúcha.