Espartanos explosivos e terroristas heróis: você acredita?

Um famoso palestrante, historiador, teve o excerto do vídeo de uma palestra divulgado, em que tece considerações sobre os espartanos retratados no episódio das Termópilas, visto no filme 300:

“Por que que o rei Leônidas de Esparta e seus 300 fanáticos são heróis? Têm estátua, filme e história em quadrinhos. Por que um islâmico ao se lançar contra as torres é um fanático que não pensa? Porque nós somos ocidentais. E toda bobagem nossa é heróica, épica, maravilhosa, e a do outro pavorosa”.

Em virtude do efeito negativo dessa divulgação, lançou nota em sua página do Facebook dizendo que o trecho foi descontextualizado, pois se referia exclusivamente ao filme.

Os quase vinte minutos de vídeo podem ser vistos aqui https://www.youtube.com/watch?v=xCMdaLbBsj0. Em que pese a manifestação do próprio palestrante, parece à toda prova evidente que sua referência não se limitava ao filme, embora nele se baseasse. Exemplo disso é sua citação à estátua, monumento erigido em homenagem aos que tombaram no heróico episódio e que em nada guarda relação com a película.

É certo que o referido palestrante, em passado recente, tirou foto com o juiz Sérgio Moro e, após críticas de seguidores, retirou o retrato do ar, embora tenha outro vídeo divulgado em que o tema da palestra é “a opinião alheia preocupa muito você?”.

Considerando tais contradições, é essencial que se atenha aos fatos, não à opinião que querem que você tenha deles nesses tempos de pós verdade.

Há uma inegável moda de gurus pret-a-porter, cujas apresentações problematizam o óbvio, fragilizando os fatos e ofertando, em substituição, teorias apartadas da realidade.

Sendo um historiador, não é crível que o palestrante mencionado não conheça o mínimo da história para saber diferenciar um filme da realidade, ainda mais se optou em usá-lo como exemplo.

A história em quadrinhos 300, na qual se baseou o filme homônimo, retrata romanticamente um episódio verdadeiro: a Batalha das Termópilas, na qual alguns milhares de gregos se bateram com algumas centenas de milhares de soldados do Império Persa, grande parte de locais escravizados, que estava a invadir a Grécia (Guerras Médicas).

Especialmente um historiador vai saber que não eram só 300 guerreiros espartanos, mas também téspios, tebanos e outros, porque, na época, não existia uma Grécia, mas cidades-estados autônomas, e que a resistência local era parte de uma estratégia de defesa, e não um ato fanático.

Situando historicamente, a batalha mencionada ocorreu durante a segunda tentativa de dominação dos medos sobre a Grécia.

A Batalha das Termópilas teve uma importante função dentro da estratégia militar grega, não podendo jamais ser considerada como um “ato kamikaze” (termo tipicamente oriental e não aplicável) ou um “fanatismo”. A missão dos que ali estavam era conter o exército invasor para que Atenas pudesse organizar-se contra o ataque.

Nos poucos dias de batalha, os gregos perderam cerca de dois mil homens, enquanto os persas tiveram baixas, segundo alguns, de vinte mil. Cada guerreiro grego caído custou ao invasor dez homens ou mais, isso porque, além da tenacidade dos que ali estavam, a estreita passagem não permitia o trânsito de grande contingente, facilitando a defesa.

No último dia da batalha, quando os gregos foram traídos por um local de nome Ephialtes, cujo conhecimento do terreno indicou aos persas um caminho que não fosse pelo estreito, os espartanos, assim como outros gregos, decidiram permanecer em vez de retirar-se, ganhando tempo para que o restante dos defensores que ali lutaram pudesse se salvar.

Não havia nada de incomum na conduta espartana de permanecer no campo de batalha, ainda que com chances impossíveis de vitoria, vez que eram criados desde cedo para o combate. Além disso, na situação específica, havia uma predição de que a morte do rei espartano garantiria a vitória à Grécia, uma das razões pela qual se especula que também por isso Leônidas permaneceu até o fim.

Fato curioso é que o Império Persa permitia aos dominados a manutenção de seus costumes e religião, o que em nada amenizava o fato de que as civilizações eram efetivamente escravizadas,  sem liberdade de determinação, com pagamento de altos tributos, a cessão de homens para o exército dominador e outros atos de submissão.

Perder a liberdade, mesmo para esses gregos divididos em cidades-estado e que possuíam também escravos, era algo inimaginável. Para os espartanos ainda mais. Tanto que, quando o imperador Xerxes enviou a mensagem para o rei Leônidas de que não queria a vida dos gregos, mas as suas armas, obteve a lacônica resposta: “molon labe”, “vem e toma”, ou “venha buscá-las”.

Esses gregos unidos, ao final, espartanos, téspios e tebanos, decidiram permanecer, para garantir que o restante do exército se retirasse para lutar outro dia, considerando que se não ganhassem tempo, todos seriam mortos pela cavalaria inimiga. Com a posição comprometida por Ephialtes, esses “ocidentais” avançaram cantando, com uma parede de escudos, contra o império persa.

Tendo Leônidas morrido durante a batalha, enquanto puderam os gregos combateram ferrenhamente por seu corpo. No fim de tudo, havia um punhado de resistentes lutando contra um império com armas quebradas, alguns, segundo Heródoto, com as mãos nuas e até mesmo com seus dentes. Até o último homem.

O sacrifício deles não foi em vão. O tempo ganho na batalha das Termópilas, além das severas baixas aos persas, permitiu que Atenas fosse evacuada, incluindo mulheres, crianças e idosos.

Os atenienses, que tiveram oportunidade de se organizar, derrotaram o império persa na batalha naval de Salamina.

Resumindo, os gregos combateram contra um exército inimigo, por sua liberdade e pelo bem-estar de seus familiares e amigos, em uma guerra declarada.

Em que isso se compara a um idiota fanático que amarra uma bomba ao corpo e, covardemente, assassina homens, mulheres, idosos e crianças em prol de uma causa sabidamente opressora e refratária a todas as virtudes?

De que forma um guerreiro protegendo seu lar pode equivaler a um pulha que faz mulheres e crianças de escudo, ou as usa em suas empreitadas? Como se compara a resistência à submissão de um estado invasor à manutenção de um sistema que escraviza mulheres, inclusive em idade infantil, para fins sexuais?

A resposta é clara: não se compara, a não ser exaltando um e recriminando outro, e qual se exalta e recrimina vai depender dos valores que se cultiva.

Equivale a pensar que aqueles que combateram o nazismo, como a resistência francesa e os meninos que morreram aos montes no Dia D, ou nossos pracinhas na Itália, eram só fanáticos também, pois ocidentais que, acreditando na liberdade, foram encontrar a morte.

Essa nova onda de falsa filosofia tende a fragilizar ou mesmo suprimir valores éticos, em substituição oferece lugares comuns e a sedução do sofisma.

Os argumentos claudicantes que validam as teses dos gurus modernos não resistem ao mais breve sopro de lógica, até por isso recusam-se aos embates. Pelo contrário, lotam auditórios de ouvintes, e apenas ouvintes, que os remuneram regiamente para ouvir discursos, longe da dialética socrática.

Não há diálogo. Não há contraposição de ideias. Há dogmas que devem ser aceitos, e quem questiona, ai, será degregado da Terra do Nunca, onde é proibido crescer.

Assim como um pelotiqueiro, os gurus fazem truques de palco. A diferença entre eles e os ditos mágicos é que os últimos são sinceros ao dizer que fazem uma prestidigitação e que tudo não passa de fantasia.

A tentativa de solapar as bases da cultura e das virtudes construídas no Ocidente é nítida. Busca-se desconstruir a verdadeira filosofia, notadamente aquela grega e cristã, que formou a base dos direitos humanos, hoje pervertidos para contemplarem apenas infratores.

Num período de pós-verdade, pós tudo, fazer com que as pessoas pareçam andar num lodaçal ético é a melhor forma de manter a nação na ignorância e facilitar a imposição, ou melhor, manutenção de um regime oligárquico. O povo permanece na miséria, enquanto uma diminuta parcela, a oligarquia, locupleta-se do dinheiro público continuamente.

Jogada na arena da oposição fomentada pela filosofia de centro acadêmico, a população se divide por gênero, raça, credo (ou falta dele) e até por dieta, porque a divisão facilita o controle.

Se não, o que são a Lava-Jato e outras operações que estão em trâmite no Judiciário, a ponta do iceberg de corrupção histórica brasileira envolvendo sempre os mesmos nomes, os mesmos grupos? Daí também a campanha de ódio aos juízes e a tentativa de forjar um tribunal que os absolva.

É um adágio milenar que a natureza tem horror ao vácuo, desse modo, ao destruir as bases do conhecimento clássico, não haverá vazio, esse espaço será preenchido pela nociva doutrinação ideológica que, no curto espaço de tempo do século XX, causou, e causa, milhões de mortes, sem contar os bilhões em sofrimento, com fome e doenças.

No local em que ocorreu a batalha das Termópilas existiriam dois monumentos. Um mais moderno, constando a frase do rei Leônidas, “venham pegá-las”, e um mais antigo, onde se lia: “Caminhante, vai dizer aos lacedemônios que aqui repousamos por havermos obedecido às suas leis”.

Ou seja, tombaram pela liberdade, por seu modo de vida, para proteger quem se quer bem. A lei não forja apenas direitos, como crê a geração floco de neve que alça ao sucesso esses gurus e cantores estridentes sem talento. Ela engendra, como pressuposto racional, um dever, de obedecê-la. Sem isso não existiria sociedade, logo, os direitos individuais.

O lodaçal ético dos “tempos líquidos”, da “pós-verdade”, conduz a uma geração hipersensível e anabolizada em direitos, que pretende combater armas reais com flores imaginárias. Quando o mundo exige uma resposta para além dos sonhos de seda das redes sociais, é preciso dá-la ou ser devorado pela esfinge.

Se hoje alguém pode comparar a resistência de um povo livre invadido por um déspota com terroristas islâmicos, é porque homens e mulheres se sacrificaram por essa liberdade. E porque pessoas lutaram contra tiranos é que, no presente, pessoas podem optar em idolatrar tais caudilhos.

Esse é o modo de vida Ocidental a que alguns têm ojeriza, em que pese lucrem muito com ele e tenham liberdade de expressão que não teriam em nenhum outro regime.

É preciso ter cuidado com argumentos relativistas que insinuam que é a mesma coisa defender sua família e matar inocentes, estacionar em local proibido e roubar milhões, lutar contra regimes totalitários e explodir hospitais.

Equivale tentar te convencer que aquele que mata crianças colocando fogo nelas é igual àquela professora que se sacrifica para salvá-las.

Pense para além dos sofismas. Cultive valores como verdade, honra, compaixão, humildade e fraternidade. Todo dia a vida cobra de nós uma postura. Você decide se vai se ajoelhar ou resistir.

É de graça. Para isso você não tem que consultar nenhum guru. Aliás, é melhor que não o faça.

*Eduardo Perez de Oliveira é juiz de Direito