O colega Danilo Amâncio Cavalcanti escreve, na coluna desta quarta-feira (01), sobre o mecanismo de prorrogação de dívidas oriundas de crédito rural. Ele é sócio do escritório DAC Advogados. Procurador do Banco da Amazônia S.A desde 2013.
Mestre em Agronegócio pela Escola de Economia da Fundação Getúlio Vargas, FGV/SP, Cavalcanti também é pós-graduado em Direito Agrário e Direito Ambiental pelo IBMEC/RJ, em Direito Eleitoral pela Universidade Federal do Tocantins – UFT, e em Direito Imobiliário e Notarial pela ESA/OAB.
É vice-presidente da Comissão de Direito Agrário e do Agronegócio da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional do Tocantins (Triênio 2019/2021). Membro da Comissão Regularização Fundiária da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional do Tocantins (Triênio 2022/2024). Autor do Livro Modelos de Planejamento para a Empresa Rural Familiar e sua aplicabilidade; Editora Dialética. Coautor do Livro “Jurisdição Constitucional e Processo Constitucional”, organizador Ministro Gilmar Ferreira Mendes; Editora IDP/EDB.

Leia a íntegra do texto:
O Manual de Crédito Rural (MCR) codifica as normas aprovadas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) e aquelas divulgadas pelo Banco Central do Brasil relativas ao crédito rural, as quais devem subordinar-se os beneficiários e as instituições financeiras que operam no Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR).
No tocante à prorrogação de dívidas rurais, as condições básicas para o alongamento de uma dívida rural estavam originalmente previstas na seção 6, capítulo 2 do item (2.6.9) do Manual de Crédito Rural que foi alterado em maio de 2021 pela Res. CMN 4.905 art. 1º), estando em vigor agora as disposições do item 2.6.4 do MCR, havendo exceção a regra no item 2.6.10, alterado para o item 2.6.5.
Na versão anterior, o MCR determinava que:
MCR 2.6.9 – Independentemente de consulta ao Banco Central do Brasil, é devida a prorrogação da dívida, aos mesmos encargos financeiros antes pactuados no instrumento de crédito, desde que se comprove incapacidade de pagamento do mutuário, em consequência de:
- Dificuldade de comercialização dos produtos;
- Frustração de safras, por fatores adversos;
- Eventuais ocorrências prejudiciais ao desenvolvimento das explorações.
Na versão atual, o item 2.6.9 deu lugar ao item 2.6.4, que diz:
MCR 2.6.4 – Fica a instituição financeira autorizada a prorrogar a dívida, aos mesmos encargos financeiros pactuados no instrumento de crédito, desde que o mutuário comprove a dificuldade temporária para reembolso do crédito em razão de uma ou mais entre as situações abaixo, e que a instituição financeira ateste a necessidade de prorrogação e demonstre a capacidade de pagamento do mutuário:
- Dificuldade de comercialização dos produtos;
- Frustração de safras, por fatores adversos;
- Eventuais ocorrências prejudiciais ao desenvolvimento das explorações.
Crédito rural: Análise das principais alterações do mecanismo de prorrogação de dívidas rurais
Comparando as duas redações, percebe-se claramente que a redação original previa um dever de prorrogação da dívida, enquanto a nova redação parece autorizar a instituição financeira a prorrogar a dívida.
No caso da segunda redação a autorização se dá desde que o mutuário comprove a dificuldade temporária para reembolso do crédito, em razão de uma das situações previstas nas alíneas do item, e que a instituição financeira ateste a necessidade de prorrogação, bem como demonstre do MCR a capacidade de pagamento do mutuário.
A instituição financeira deve prorrogar a dívida do produtor rural ou está autorizada a prorrogar a dívida do produtor?
A resposta para esta pergunta não é fácil, pois na primeira redação era utilizado o termo “devida” e na nova redação é utilizado o termo “autorizada”. Apenas a interpretação gramatical do texto nos levaria a conclusão de que a norma confere uma faculdade para a instituição financeira, contudo, esta não nos parece ser a melhor interpretação.
Na redação do item 2.6.9, desde que comprovada a incapacidade de pagamento e os motivos previstos na norma, a prorrogação seria devida, não cabendo ao agente financeiro qualquer discricionariedade nesse sentido, e não havendo qualquer critério técnico expresso na norma para análise.
Já na redação do item 2.6.4, é utilizado o termo “autorizada”, e a prorrogação agora é condicionada a comprovação da incapacidade de pagamento pelos motivos legais, acrescida do atestado da instituição financeira quanto a necessidade de prorrogação e demonstrativo da capacidade de pagamento do mutuário.
Quanto ao termo “autorizada”, utilizado na nova redação do item 2.6.4, alguns autores, como Lutero Paiva, defendem que na verdade não seria uma autorização, mas sim um dever do agente financeiro de prorrogar a operação.
Nas palavras do ilustre autor:
“Outro ponto a destacar é que o fato da nova redação do MCR 2.6.4 dispor que “a instituição financeira fica autorizada a prorrogar a dívida” não quer dizer que o financiador tem a faculdade de conceder ou de negar o benefício ao mutuário, como se estivesse no âmbito de sua discricionariedade e arbítrio assim decidir. Não é assim que deve ser interpretada a expressão “fica autorizada”.
O dever da instituição financeira de prorrogar a dívida não é irrestrito, como bem salienta o autor, mas apenas quando preenchidos todos os requisitos da norma.
Assim, para a prorrogação da dívida, em um primeiro momento, há o dever do mutuário de demonstrar documentalmente para a instituição financeira a dificuldade temporária para o reembolso do crédito rural em razão de dificuldade de comercialização dos produtos, frustração de safras, por fatores adversos ou ocorrências prejudiciais ao desenvolvimento das explorações.
Se o mutuário não fizer o seu pedido acompanhado de documentação idônea para comprovar alguma das razões previstas no MCR, o seu pedido deverá ser de plano negado pela instituição financeira, pois a comprovação exigida pelo manual não foi realizada.
Superada a comprovação das razões para a prorrogação da dívida, caberá a instituição financeira, através de sua área técnica, dizer que a prorrogação é necessária e que o mutuário terá capacidade de pagamento para honrar os compromissos decorrentes da prorrogação.
Desta forma, estamos diante de um procedimento mais complexo e técnico que o anterior para prorrogação da dívida, quando comparamos as redações do MCR, agora surge uma fase que depende do mutuário e outra que dependerá da instituição financeira, enquanto na redação anterior bastava ao mutuário comprovar alguma das razões elencadas no MCR item 2.6.9.
Quanto à comprovação da dificuldade temporária para reembolso do crédito rural em razão dos motivos elencados no MCR, há orientação para que o mutuário apresente laudo técnico atestando alguma das hipóteses previstas na norma.
No que compete á instituição financeira, a capacidade de pagamento deverá ser comprovada através de vistoria da propriedade rural e detida análise da contabilidade da atividade nela exercida, pois o prazo de alongamento deverá ser compatível com o faturamento da atividade rural.
Comprovados os requisitos da norma por parte do mutuário e atestado pela instituição financeira a necessidade de prorrogação bem como a capacidade de pagamento, a melhor interpretação deve ser a orientada no sentido da leitura da expressão “autorizada” como sendo um dever da instituição financeira de prorrogar o débito.
A exceção prevista no item 2.6.5 do MCR sobre crédito rural
Vale destacar que há duas exceções previstas no item 2.6.5, mitigando a aplicação da regra geral descrita no item 2.6.4. Veja-se:
5 – O disposto no item 4: (Res CMN 4.883 art 1º)
- b) não é aplicável:
I – aos créditos de comercialização sujeitos a normas próprias aplicáveis à Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM);
II – aos financiamentos com recursos de fundos e programas de fomento, que estão sujeitos a normas próprias.
Os créditos decorrentes da Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM) e os créditos dos financiamentos com recursos de fundos e programas de fomento estão sujeitos à normas próprias.
O Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins já se posicionou sobre a exceção ainda na redação do antigo item 2.6.10, agora item 2.6.5 do MRC:
Processo: 00031034620188272721
Ementa
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE EMBARGOS À EXECUÇÃO. REQUERIMENTO DE PERÍCIA. CERCEAMENTO DE DEFESA. INOCORRÊNCIA. ALONGAMENTO DA DÍVIDA. AUSÊNCIA DE PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS.
- Não há cerceamento de defesa quando se encontra ausente o preenchimento dos demais requisitos para o alongamento da dívida decorrente de alegada frustração de safra que teria ocorrido nos anos de 2015, 2016 e 2017.
- Os financiamentos feitos para investimento e custeio realizados com recursos do Fundo Constitucional do Norte – FNO, aplica-se a regra prevista no item 10 do MCR, que veda a prorrogação nos casos de financiamentos com recursos dos fundos constitucionais. o alongamento do débito só é possível por autorização específica do CMN ou do BC, e nas estritas condições constantes em suas Resoluções.
- Recurso de apelação conhecido a que se nega provimento.
(Apelação Cível 0003103-46.2018.8.27.2721, Rel. MAYSA VENDRAMINI ROSAL, GAB. DA DESA. MAYSA VENDRAMINI ROSAL, julgado em 06/04/2022, DJe 26/04/2022 11:31:54)
Nos casos excepcionais, prevalecerão as normas específicas em detrimento da regra geral de prorrogação do item 2.6.4 do MCR. A título de exemplo, podemos destacar os recursos dos fundos constitucionais previstos no artigo 159, inciso I, alínea “c” da Constituição da República Federativa do Brasil, e regulamentados pela Lei nº 7.827, de 27 de setembro de 1989.
Por qual prazo deve ser prorrogado o débito/crédito rural?
No que compete ao prazo de prorrogação, caberá ao banco fixá-lo dentro dos critérios de prazo previstos no MCR para cada tipo de atividade e de acordo com a previsão de recursos para atividade rural nos próximos ciclos produtivos, podendo a prorrogação ser deferida por prazo inferior ao prazo pleiteado, quando demonstrado que atividade rural poderá pagar o débito em um prazo menor que o proposto pelo mutuário.
A título de exemplo, seguem alguns prazos previstos no MCR:
Os prazos máximos para o reembolso dos créditos de custeio com recursos controlados, exceto os dos fundos constitucionais, são os seguintes: (Res CMN 4.883 art 1º)
- a) agrícola:
I – 3 (três) anos para as culturas de açafrão e palmeira real (palmito);
II – 2 (dois) anos para as culturas bienais;
III – 14 (quatorze) meses para culturas permanentes;
IV – 1 (um) ano para as demais culturas;
- b) pecuário:
I – 6 (seis) meses, no financiamento para aquisição de bovinos e bubalinos para engorda em regime de confinamento;
II – 2 (dois) anos quando o financiamento envolver a aquisição de bovinos e bubalinos para recria e engorda em regime extensivo e o crédito rural abranger as duas finalidades na mesma operação;
III – 1 (um) ano nos demais financiamentos.
O financiamento está sujeito aos seguintes prazos máximos, que incluem a carência: (Res CMN 4.883 art 1º)
- a) investimento fixo: 12 (doze) anos;
- b) investimento semifixo: 6 (seis) anos, exceto quando se tratar de aquisição de animais para reprodução ou cria, cujo prazo será de até 5 (cinco) anos, incluído até 12 (doze) meses de carência.
As operações de FEE relativas a produtos e sementes ficam sujeitas às seguintes condições específicas: (Res CMN 4.883 art 1º; Res CMN 5.036 art 1º)
- a) prazos máximos de vencimento: (Res CMN 4.883 art 1º; Res CMN 5.036 art 1º)
I – 90 (noventa) dias para feijão, feijão caupi e algodão em caroço, sendo que, para este último, o prazo poderá ser estendido por mais 150 (cento e cinquenta) dias, desde que ocorra a substituição por algodão em pluma; (Res CMN 4.883 art 1º)
II – 180 (cento e oitenta) dias para açaí, arroz, borracha natural, café, castanha do Brasil, farinha de mandioca, fécula de mandioca, goma e polvilho, juta e malva embonecada e prensada, milho, soja, sorgo, sisal, trigo, sementes e os produtos constantes das tabelas do item 26; (Res CMN 4.883 art 1º)
III – 240 (duzentos e quarenta) dias para algodão em pluma, cana-de-açúcar, caroço de algodão, cera de carnaúba e pó cerífero e leite; (Res CMN 5.036 art 1º)
IV – 120 (cento e vinte) dias para andiroba (amêndoa), babaçu (amêndoa), baru (fruto), cacau (amêndoa), cacau cultivado (amêndoa), juçara (fruto), laranja, macaúba (fruto), mangaba (fruto), pequi (fruto), piaçava (fibra), pinhão (fruto), e umbu (fruto); (Res CMN 4.883 art 1º)
O reembolso do crédito rural de industrialização deve ser adequado ao ciclo de comercialização dos produtos resultantes do processo, respeitado o prazo máximo de 2 (dois) anos para a uva e de 1 (um) ano para os demais produtos.
Em quais hipóteses o pedido de prorrogação será indeferido?
O pedido de prorrogação deverá ser indeferido quando o mutuário não comprovar a dificuldade temporária em honrar seus compromissos e os motivos previstos na norma para prorrogação, podendo também ser indeferido caso não seja atestada a necessidade de prorrogação ou a capacidade de pagamento.
Quanto a necessidade de prorrogação, caberá à instituição financeira analisar o mérito do pedido de prorrogação verificando se a situação proposta pelo mutuário realmente se enquadra dentro de um quadro de necessidade de prorrogação de dívida, havendo nesta etapa a discricionariedade do analista da instituição financeira, pois ele terá de comparar a situação proposta pelo mutuário com a situação mercadológica da atividade.
A decisão da instituição financeira deverá ser motivada?
Vale destacar que a decisão da instituição financeira deferindo ou indeferindo o pedido de prorrogação sempre deverá ser motivada de forma técnica, sob pena de invalidade, não se confundindo discricionariedade com ausência de motivação do ato administrativo.
Quando a instituição financeira declara a motivação de um ato administrativo discricionário, a validade do ato fica vinculada à existência e à veracidade dos motivos por ela apresentados como fundamentação.
Diante do exposto, defende-se a necessária motivação de todo o ato discricionário, de modo a fazer valer os princípios e valores basilares da Constituição pátria, como o contraditório, a legalidade e a probidade administrativa.
Conclusão
O novo mecanismo de prorrogação de dívidas rurais representa uma evolução nos critérios para prorrogação de dívidas rurais, contemplando critérios mais objetivos e a necessidade de análise por parte da instituição financeira de forma técnica.
Há uma regra geral prevista no item 2.6.4 do MCR para prorrogação de dívidas rurais excepcionada pelo item 2.6.5, determinando que o crédito rural da Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM) e os financiamentos com recursos de fundos e programas de fomento tenham regramento próprio para prorrogação das obrigações.
O prazo de prorrogação do débito deverá obedecer aos limites definidos pelas normas gerais do MCR para cada tipo de atividade, cabendo a instituição financeira definir o prazo em conformidade com a capacidade de pagamento do mutuário.
Concordando com boa parte dos autores que tratam de alongamento de dívidas rurais, o alongamento do débito não é uma faculdade para instituição financeira, mas, sim, um direito do produtor rural. Contudo, o exercício desse direito está condicionado aos critérios legais, cabendo ao mutuário apresentar o pedido carreado das provas que ensejam o alongamento de débito.
A instituição financeira, em seguida, terá o dever de analisar o pedido, e de forma motivada se manifestar atestando de forma positiva ou negativa se o mutuário realmente necessita da prorrogação do débito, e se a sua atividade rural tem capacidade de honrar as obrigações que pretende assumir no prazo proposto. O dever da instituição em prorrogar o débito está essencialmente subordinado ao dever de cumprimento dos requisitos da norma.