As consequências do fim da ultratividade dos instrumentos coletivos

A ultratividade das normas coletivas há muito gera polêmicas no direito do trabalho, sendo que o próprio Tribunal Superior do Trabalho já alterou por algumas vezes o texto da Súmula 277, que trata do tema. E o que significa, de fato, a ultratividade de uma norma coletiva?

Pois bem, em sumas palavras, significa que mesmo após o fim da vigência, os acordos coletivos continuam a produzir efeitos, não podendo os empregadores deixarem de cumpri-los mesmo quando expirado o prazo de validade da negociação coletiva.

É importante destacar que os instrumentos normativos são fontes do direito do trabalho e têm força de lei. Tendo, portanto, força de lei, as empresas devem cumpri-los. O cerne da questão é exatamente sobre o período que a empresa deverá observar as previsões de tais instrumentos, afinal, qual seria a limitação temporal da eficácia das negociações coletivas?

A última alteração da redação da Súmula 277 do TST reconheceu os efeitos de ultratividade aos instrumentos normativos, em consonância com o artigo 114, § 2º, da Constituição Federal de 1988, nos termos a seguir: “as cláusulas normativas dos acordos coletivos ou convenções coletivas integram os contratos individuais de trabalho e somente poderão ser modificadas ou suprimidas mediante negociação coletiva de trabalho”.

Deste modo, o verbete sumular passou a adotar a teoria da aderência limitada por revogação (ultratividade condicionada). Ou seja: as previsões de um instrumento coletivo integram-se aos contratos de trabalho até que um novo instrumento coletivo seja firmado.

Vale destacar que a mudança na redação da Súmula 277 do TST visou assegurar maior segurança jurídica aos trabalhadores e levar as empresas a buscar a negociação coletiva ao final do período de vigência da norma anterior, evitando-se a lacuna de direitos.

Ocorre, porém, que este cenário foi completamente modificado após o advento da Lei n°. 13.467/2017 (Reforma Trabalhista), que alterou a redação do artigo 614, § 3º, da CLT, para dispor que “não será permitido estipular duração de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho superior a dois anos, sendo vedada a ultratividade”.

Neste cenário, a Reforma Trabalhista verdadeiramente encerrou a discussão quanto à ultratividade dos instrumentos coletivos.

Por outro lado, estando ainda vigente a Súmula 277 do TST, há que se destacar a ADPF 323  ajuizada pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen) questionando exatamente referida Súmula.

O relator da ADPF 323, ministro Gilmar Mendes, já adiantou seu voto e considerou inconstitucional a súmula 277 do TST, bem como a inconstitucionalidade de interpretações e de decisões judiciais que entendem que o art. 114, parágrafo segundo, da Constituição Federal, na redação dada pela Emenda Constitucional nº 45/2004, autoriza a aplicação do princípio da ultratividade de normas de acordos e de convenções coletivas.

O Ministro criticou as decisões do TST sobre o tema “ao passar a determinar a vigência de cláusulas coletivas a momento posterior à eficácia do instrumento ao qual acordadas, a Justiça Trabalhista, além de violar os princípios da separação dos poderes e da legalidade, também parece ofender a supremacia dos acordos e das convenções coletivas. É evidente, portanto, a existência de preceitos fundamentais potencialmente lesados na questão aqui discutida”, afirmou, e disse ainda, “a alteração de entendimento sumular sem a existência de precedentes que a justifiquem é proeza digna de figurar no livro do Guinness, tamanho o grau de ineditismo da decisão que a Justiça Trabalhista pretendeu criar”.

Desde o ano de 2016 todos os processos e os efeitos de decisões no âmbito da Justiça do Trabalho que discutem a matéria estão suspensos por decisão liminar, sendo que o voto relator caminha no mesmo sentido daquilo que já havia sido previsto na Reforma Trabalhista em 2017 e garante maior segurança às negociações coletivas.

Após o voto do Ministro Gilmar Mendes (Relator), os Ministros Nunes Marques, Alexandre de Moraes e Roberto Barroso acompanharam o Relator julgando procedente a arguição.

Já o Ministro Edson Fachin votou julgando improcedente o pedido formulado e a Ministra Rosa Weber, preliminarmente, julgou prejudicada a arguição em razão da perda superveniente de objeto, e, no mérito, julgou improcedente o pedido.

Atualmente os autos estão com vistas ao Ministro Dias Toffoli.

O principal questionamento, portanto, caso seja declarada a inconstitucionalidade da Súmula 277 do TST, é sobre quais os efeitos práticos desta declaração pelo STF. E, neste ponto, considerando que a Reforma Trabalhista encerrou a discussão sobre a ultratividade, qual é o efeito da ausência desta nos instrumentos de negociação coletiva de trabalho?

O primeiro efeito a ser destacado, embora pareça óbvio, é que as partes deverão negociar ou as regras estabelecidas perderão a validade.

Assim, cabe aos envolvidos nas negociações coletivas encontrarem mecanismos de negociação para não chegarem à situação de não haver instrumento vigente.

Há ainda outro efeito, e esse decorre da redação da súmula 51 do TST, que estabelece que uma norma regulamentar só pode ser alterada para contratos novos, não atingindo as relações contratuais anteriores. Mas qual a relação dessa outra súmula com a ausência de ultratividade?

A resposta está no próprio artigo 8º da CLT, o qual reconhece que os usos e costumes das empresas são fontes formais autônomas de direito do Trabalho:

Art. 8º – As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público.

Neste cenário, caso uma empresa tenha o costume de manter seus empregados em jornada de 40 horas semanais, apesar de o contrato escrito e a própria norma constitucional prever 44 horas, procedendo de tal forma reiteradamente, acaba por tacitamente gerar uma norma interna de que a jornada de seus empregados é de 40 horas semanais, sendo extra a superior à 41ª hora.

Em sequência a referido entendimento, o que ocorrerá com as normas coletivas? Ora, se as normas coletivas não aderem ao contrato – tendo vigência somente durante a validade do instrumento coletivo que a institui – e a empresa não negociar sua alteração ou revalidação, ou os trabalhadores não negociarem por longo tempo, caso a empresa mantenha a aplicação de regras ali contidas que gerem benefícios aos empregados, sem a existência de um instrumento coletivo que as autorizem, estará criando uma nova regra, mas agora derivada do “costume” em manter as disposições do instrumento coletivo anterior.

Há que se frisar, ainda, que a aplicação de regra que relativize direito trabalhista, mesmo não estando vigente o acordo coletivo que a estabeleceu, poderá gerar até mesmo situação de infração à norma trabalhista, causando não só o risco de ações trabalhistas, mas também o de, em eventual fiscalização administrava (trabalhista ou previdenciária), ocorrer autuação da empresa por se verificar alguma infração legal.

Tal situação, somada ao previsto na súmula 51 do TST, poderá gerar novos riscos jurídicos às empresas, sendo necessário que estas busquem o gerenciamento do risco, podendo ser feito de diversas formas, que devem ser estudadas a cada caso, como a própria previsão de um prazo de vigência pós prazo convencional e enquanto as negociações se mantém no próprio instrumento coletivo.

Assim sendo, o que se observa é que a ausência da ultratividade dos instrumentos coletivos deve servir como alerta para que as empresas, sindicatos e trabalhadores adotem estratégias para lidar com a demora na negociação coletiva e a vigência das regras contidas na convenção finda.

Em resumidas palavras, é necessário que a negociação coletiva seja vista como um excelente instrumento de gerenciamento de relações trabalhistas – e não como ingerência em vida empresarial, ou como redução de direitos.