Tribunal do Júri Virtual: ilegalidade

*Roberto Serra da Silva Maia

No dia 21 de junho de 2020, o conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Mário Guerreiro, no Ato Normativo nº 0004587-94.2020.2.00.0000, votou pela aprovação de uma proposta de resolução que tem a finalidade de autorizar os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Federais a adotarem procedimentos para o uso de videoconferência na realização das sessões de julgamento do Tribunal do Júri, em razão das contingências geradas pela atual realidade de pandemia (Covid-19).

A discussão não é recente, e já foi alvo do Ato Normativo n. 7496-46.2019.2.00.0000, onde no mês de outubro de 2019 (298ª Sessão Ordinária), o Plenário do CNJ decidiu por recomendar “aos Tribunais de todo o país a adoção de procedimentos voltados a otimizar o julgamento das ações relacionadas a crimes dolosos contra a vida pelo Tribunal do Júri”, tendo o Conselho, posteriormente, por intermédio da Recomendação n. 55/2019, reafirmado a orientação.

Os principais fundamentos jurídicos utilizados para defesa da possibilidade da sessão virtual do Tribunal do Júri, encontraram-se lastreados no art. 5º, inciso LXXVII, da Constituição Federal, que assegura a razoável duração do processo judicial e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação, e nos arts. 185 e 222, do Código de Processo Penal, os quais permitem a adoção do sistema de videoconferência em atos processuais de procedimentos e ações penais.

Ocorre que a questão não é tão simples quanto parece.

Primeiro, porque a proposta do CNJ padece de inconstitucionalidade formal, pois viola flagrantemente a disciplina do art. 22, inciso I, da Constituição da República, uma vez que é a União quem detém o monopólio e a exclusividade para estabelecer a disciplina legal da matéria.

Segundo, porque para além da inconstitucionalidade formal, possível também antever a inconstitucionalidade material.

Explica-se.

Não se olvida que depoimentos testemunhais pela “internet”, recebimento de petições por e-mail, e julgamento de casos diretamente do gabinete do juiz, sem a proximidade física com qualquer pessoa, são realidades que a tecnologia nos proporciona, sobretudo após a edição da Lei n. 11.419/2006, que dispõe sobre a informatização do processo judicial.

Mas o progresso e o desenvolvimento trazidos pela informática, necessários para a otimização dos trabalhos judiciais, encontram limites nas balizas do Tribunal do Júri, cujo escopo jamais poderá ficar relegado ao singelo contato dos maquinários da tecnologia.

Da leitura do art. 5º, inciso LXXVII, da Constituição Federal, e dos arts. 185 e 222, do Código de Processo Penal, introduzidos pela Lei n. 11.900/2009, não se pode concluir, como fez o CNJ, que tais dispositivos estabelecem regras procedimentais que permitem a adoção do sistema de videoconferência em sessões do Tribunal do Júri.

Segundo pontuado pelo Desembargador paulista Guilherme de Souza Nucci em obra doutrinária recente, “a Lei 11.900/2009 autorizou o uso da videoconferência em interrogatórios realizados na fase de instrução perante juiz togado, tanto assim que indicou as modalidades de audiências que suportam a utilização dessa tecnológica (arts. 400, 411 e 531, CPP)”. Em caso algum “permitiu-se a operacionalização da instrução no plenário do Tribunal do Júri por meio de videoconferência, o que seria, de fato, medida abusiva”.

Ainda para o referido jurista, “os princípios da oralidade, imediatidade e identidade física do juiz, aplicados fielmente no Tribunal Popular, não se compatibilizam com esse instrumento tecnológico. Os jurados são leigos e precisam do contato direto entre eles e todos os depoentes, inclusive o réu, se desejar ser interrogado”. Assim, “transformar o plenário do júri num ‘programa de televisão’, valendo-se da videoconferência para ouvir testemunhas e réu, sem qualquer contato entre julgadores leigos e as peças principais do processo, significa ousadia superior ao que suporta a plenitude de defesa, garantia constitucional do acusado” (NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 19. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2020).

De fato, um dos princípios que diferenciam os processos do Tribunal do Júri dos demais é aquele previsto no art. 5º, inciso XXXVIII, letra “a”, da Constituição Federal, ficando clara a intenção do constituinte ao conceder ao acusado, no Júri, além da ampla defesa outorgada a todo e qualquer réu, em qualquer processo, cível, administrativo ou criminal (art. 5º, LV, CF), a “plenitude da defesa”; pois um Tribunal que decide sem fundamentar seus veredictos, como é o caso do Tribunal do Júri, precisa proporcionar ao acusado uma defesa acima da média, que precisa ser, além de ampla, plena.

E a concepção da plenitude da defesa muitas vezes pode ser extraída da comunicação múltipla, que além de racional, necessita do elemento presencial, afinal, a linguagem corporal, a exaltação dos sentimentos, das emoções e das paixões humanas, potencializam os sinais reflexos correspondentes àquilo que se procura transmitir, a ponto de influir nos jurados e legitimar uma absolvição segundo razões de índole eminentemente subjetivas ou de natureza destacadamente metajurídica, como, por exemplo, o juízo de clemência, de equidade, ou de caráter humanitário (STF, RHC 117.076/PR).

Ademais, o princípio do “juiz natural”, cujo próprio nome é autoexplicativo, impede que o Tribunal do Júri, como autoridade judiciária competente para julgar o autor de um crime doloso contra a vida, ocorra por videoconferência, onde o juízo se faz virtual. O juiz natural neste caso, por definição, contrapõe-se ao juiz virtual. É um juiz que vê e é visto fisicamente; sob o ângulo de visão da defesa (réu), esse direito é o de ouvir, ser ouvido, de ver e ser visto “in natura, conforme, inclusive, se extrai da inteligência do art. 7º, n. 5, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), que estabelece a obrigatoriedade da presença física do réu perante o Juiz, com a mesma disciplina do art. 9º, n. 3, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.

Portanto, as normativas tratadas pelo CNJ para implementação das sessões virtuais do Tribunal do Júri padecem de inconstitucionalidade formal, uma vez que afrontado art. 22, inciso I, da Constituição Federal, e da inconstitucionalidade material, eis que violador, dentre outros, dos princípios da plenitude da defesa, da oralidade, da imediatidade, da identidade física do juiz, e do próprio juízo natural.

*Roberto Serra da Silva Maia é mestre em Direito, advogado criminalista, e professor do Curso de Direito da PUC-GO