Tipos abertos da Lei de Improbidade Administrativa antes das necessárias alterações promovidas pela Lei 14.230/2021

*Juberto Ramos Jubé

“Ora, se a lei em debate deixa de grafar o que ela entende como ato de improbidade, partindo dos seus três tipos, sem definir o conteúdo principal, não é difícil imaginar as graves e grandes injustiças que serão praticadas aos direitos dos agentes públicos, pois a interpretação da norma, nem sempre será a mais adequada, dado o seu inconcebível caráter de indefinição.” (Mauro Roberto Gomes de Mattos. Revista da EMERJ, v. 9, nº 35, 2006).

Anteriormente à abordagem jurídica acerca dos tipos abertos da Lei de Improbidade Administrativa, pontualmente corrigidos pelo advento da Lei 14.230/2021, importante rememorarmos o contexto histórico que culminou com a proposição da LIA.

Em 1989, após mais de 20 anos de Ditadura Militar, tivemos a primeira eleição direta para presidente. Aquele pleito eleitoral, vencido por Fernando Collor de Mello, foi marcado por fortes discursos que defendiam a ética na política e o combate à corrupção.

Um ano antes, Collor de Mello surgiu no cenário nacional como “O Caçador de Marajás” (título da revista Veja de 23/03/1988, Ed. Abril). Os intitulados “marajás” eram servidores públicos que, através de meios fraudulentos, acumulavam vencimentos e benefícios salariais descomedidos.

A “caça” de Collor aos “marajás” conferiu-lhe notoriedade como gestor público. Num momento de descontrole inflacionário e especial descontentamento popular com a classe política, o jovem governador de Alagoas construiu a imagem de paladino da moral administrativa. Daí para o Palácio do Planalto foi um salto quase que instantâneo.

Collor foi empossado em 15/03/1990 e três meses depois, em julho de 1990, já enfrentava as primeiras denúncias de corrupção em seu governo. Em outubro, as acusações passaram a envolver pessoas próximas a si, como PC Farias, seu ex-tesoureiro de campanha, que operaria como mediador de negócios entre empresários e o governo (fonte: memoriaglobo.globo.com).

Em meio a tudo isso, no mês de agosto de 19991, Collor apresentou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei 1.446/1991, que tornou-se a Lei 8.429/1992. A Lei de Improbidade Administrativa.

Na data de 24 de maio de 1992 as denúncias, enfim, atingiram diretamente o presidente Fernando Collor de Mello. Seu irmão Pedro Collor, em entrevista à revista Veja, acusou-o de manter uma espécie de sociedade com PC Farias, que seria, então, seu testa-de-ferro nos negócios. E em junho de 1992, Collor sanciona a Lei 8.429/1992.

Entre a apresentação do PL (em 16/08/1991) e a sanção da lei (em 02/06/1992) transcorreram-se pouco mais de 09 meses. Ou seja, uma tramitação muito rápida para uma proposição que merecia um debate jurídico profundo, sobretudo por tratar-se de tema de natureza constitucional (não se olvidando que a LIA regulamenta o disposto no §4º do art. 37 da CF). Contudo, o debate jurídico foi substituído pelo clamor social do combate à corrupção. Corrupção a qual, segundo as palavras do Ministro da Justiça Jarbas Passarinho, então componente do mencionado governo, na exposição de motivos do PL 1446/91, se tratava de “uma das maiores mazelas que, infelizmente, afligiam o País(D.O. de 17.08.1991, Seção I, p. 14.124).

A título de comparação e para se ter uma noção de quão rápida foi a tramitação do PL que originou a Lei de Improbidade Administrativa, registramos que o projeto de lei que a revisou (PL 10.887/2018) tramitou no Congresso por 03 longos anos até se tornar a Lei 14.230/2021.

A pressa na aprovação da LIA, por certo, em decorrência do conturbado momento político, que clamava por respostas rápidas no combate à corrupção, em um governo que se propunha restaurar a ética na política, gerou um diploma com tipos legais abertos, os quais, lamentavelmente, permitiram o manejo indiscriminado de ações por ato de improbidade administrativa contra agentes que, mesmo lastreados pela boa-fé, foram vítimas da sanha persecutória de parcela dos membros do Ministério Público.

Leis criadas no açodamento do clamor popular, não raro, deixam trincas por onde penetra o abuso de poder, e essas ocorrências são de difícil reparo, como no caso da LIA, cujos tipos legais, antes das alterações promovidas pela Lei 14.230/2021, eram abertos e, de fato, não havia a definição do que vinha a ser ato ímprobo.

Feito o breve recorte histórico, oportuno anotar que a defesa da probidade administrativa é imprescindível para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito, que depende de instituições públicas administradas por gestores competentes e honestos, de forma que o combate à corrupção deve ser política pública imprescindível e perene. Entretanto, a norma legal apenas funciona de modo justo e efetivo quando é clara e objetiva, enfim sem tipos abertos, não permitindo ao operador interpretá-la a partir de uma visão particular de mundo ou corporativista, tal qual se sucedeu com a LIA antes da Lei 14.230/2021.

Os comandos antes abertos da Lei 8.429/1992 e a precipitação de parcela dos membros do Parquet permitiram a banalização das ações por ato de improbidade administrativa.

Inegavelmente, o comando legal expresso na LIA até as alterações promovidas pela Lei 14.230/2021 tão somente especificavam os tipos de improbidade administrativa (arts. 9º, 10 e 11), todavia, sem determinar ou conceituar o que na realidade seria o ato ímprobo.

A ausência de definição do ato ímprobo permitiu que membros do MP, a partir de uma interpretação negligente do instituto legal em voga, por exemplo, manejassem ações por ato de improbidade em face de atos administrativos ilegais em tese, contudo, despidos de má-fé (dolo) e do efetivo prejuízo ao erário.

Sobre a distinção entre ato ímprobo e mera ilegalidade, oportuno consignar o seguinte precedente do e. STJ, in verbis: “O ato de improbidade, a ensejar a aplicação da Lei nº. 8.429/1992, não pode ser identificado tão somente com o ato ilegal. A incidência das sanções previstas na lei carece de um plus, traduzido no evidente propósito de auferir vantagem, causando dano ao erário, pela prática de ato desonesto, dissociado da moralidade e dos deveres de boa administração, lealdade e boa-fé”. (STJ, REsp 269.683, 2ª Turma, rel. Min. Paulo Media, DJ 03.11.2004).

Dentre tantos outros, colhe-se também mais esse julgado do e. STJ, in verbis: “O ato ilegal só adquire os contornos de improbidade quando a conduta antijurídica fere os princípios constitucionais da Administração Pública coadjuvada pela má-intenção do administrador, caracterizando a conduta dolosa; a aplicação das severas sanções previstas na Lei 8.429/92 é aceitável, e mesmo recomendável, para a punição do administrador desonesto (conduta dolosa) e não daquele que apenas foi inábil (conduta culposa).” (STJ, REsp 1257150, 1ª Turma, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 17/09/2013).

Concluímos, assim, que mesmo antes das recentes alterações da LIA a jurisprudência já definia de modo bem claro os contornos necessários para se identificar o ato ímprobo. Porém, parcela dos membros do MP ainda insistia em adaptar os tipos abertos da Lei 8.429/1992 aos casos de mera ilegalidade.

Por isso a Lei 14.230/2021, que revisou consideravelmente a LIA, corrigindo-a e complementando-a, era tão necessária, ao que encerramos o presente texto citando Fábio Konder Comparato, para o qual “A lei em branco, muito ao contrário, apresenta-se como norma de conteúdo incompleto, e cujo aperfeiçoamento só é alcançado mediante reenvio a outro diploma normativo, já existente ou a ser futuramente editado.” (in Direito Público, Estudos e Pareceres. Saraiva, São Paulo, 1996).

*Juberto Ramos Jubé é advogado, especialista em processo civil e direito administrativo. Diretor Regional Centro-Oeste da Associação Brasileira da Advocacia Municipalista – ABAM.