Reconhecimento ilegal não é prova – é risco de erro judicial

Paulo Castro*

Alguém é chamado à delegacia. Ouve que foi reconhecido como autor de um assalto. Nenhum mandado, nenhuma prova material, nenhuma descrição confiável. Apenas o olhar de uma vítima — meses após o crime. Sozinho, diante da autoridade, escuta: “Foi você, não foi?”. Esse é o retrato do chamado show up: um reconhecimento feito às pressas, sem comparação, sem cautela, sem lei. O Tribunal de Justiça de Goiás deu a resposta que o sistema precisa ouvir mais vezes: isso não é prova. É risco de erro judicial.

O caso

Em recente julgamento, o Tribunal de Justiça de Goiás manteve decisão absolutória em processo que tratava de roubo majorado, com base na nulidade do reconhecimento pessoal realizado fora dos parâmetros legais. O recurso do Ministério Público foi desprovido. A razão? A única prova de autoria era um reconhecimento informal, feito sem os cuidados exigidos pelo artigo 226 do CPP — o que, segundo o próprio TJGO e o STJ, compromete toda a confiabilidade do ato.

Crítica da defesa: o olho não basta, a lei exige forma

O reconhecimento pessoal é uma das provas mais sensíveis do processo penal. Por isso, o artigo 226 do Código de Processo Penal estabelece ritos rigorosos: descrição prévia do suspeito, apresentação ao lado de outras pessoas semelhantes, registro formal. Tudo para evitar que uma memória frágil ou sugestionada se transforme em sentença.

No caso analisado, não houve descrição precisa, nem comparação com outros indivíduos. Houve apenas um apontamento informal, sem estrutura, seguido de um reconhecimento posterior já contaminado. E como confirmam decisões reiteradas do STJ, o vício no início compromete todo o caminho probatório. A condenação, nessas condições, seria temerária.

Desenvolvimento: o reconhecimento contaminado como vício estrutural

A prática do reconhecimento “a olho nu”, em cenário de apresentação única, é chamada de show up. Trata-se de uma técnica rechaçada pela psicologia do testemunho e pelas garantias do processo penal. Ela favorece falsas memórias, reforça preconceitos inconscientes e transforma o réu em culpado por simples aparência.

A jurisprudência atual é firme: se o reconhecimento não obedece aos parâmetros legais, ele é nulo — e seus desdobramentos também. Como afirmou o Superior Tribunal de Justiça em precedentes paradigmáticos (HC 598.886/SC, AgRg no HC 819.550/SP), não se pode confirmar em juízo aquilo que nasceu contaminado.

Conclusão: memória sem método não condena ninguém

O reconhecimento informal pode parecer eficiente à primeira vista. Mas o que ele entrega em velocidade, cobra em justiça. O processo penal, como sistema de proteção da liberdade, exige rigor probatório — especialmente quando se trata da autoria.

Reconhecimentos feitos fora da lei, sem garantias mínimas, são frágeis demais para sustentar condenações. A decisão do TJGO reafirma que o sistema acusatório brasileiro não pode tolerar atalhos quando está em jogo o bem mais precioso: a liberdade de uma pessoa.

*Paulo Castro é advogado criminalista, bacharel em Direito e especialista em Ciências Criminais e na Lei de Drogas. Membro da Comissão Especial de Direito Processual Penal, da Comissão Especial de Defesa do Tribunal do Júri, da Comissão Especial de Execução Penal e da Comissão de Segurança Pública e Política Criminal da OAB/GO.

Jurisprudência citada:

  • STJ, AgRg no HC 819.550/SP, rel. Min. Daniela Teixeira, Quinta Turma, DJe 06/11/2024;
  • STJ, AgRg no HC 522.499/SC, rel. Min. Rogério Schietti Cruz, Sexta Turma, DJe 30/08/2023;
  • TJGO, AC nº 5106330-45.2023.8.09.0149, rel. Des. Adegmar José Ferreira, DJe 08/07/2024.