A exploração sexual digital de crianças e adolescentes se mostrou um fenômeno crescente no cenário contemporâneo, impulsionado pelo avanço das tecnologias digitais e, mais recentemente, pela introdução da inteligência artificial. Diferentemente da pedofilia tradicional, que se manifesta na violência física contra crianças e adolescentes, a violência sexual virtual ocorre no ambiente digital, onde o abuso pode se materializar por meio da troca de mensagens, produção e disseminação de material íntimo infantil, deepfakes e outras práticas ilícitas que exploram menores de idade. Essa forma de violência desafia as legislações existentes e questiona a eficácia dos métodos tradicionais de repressão ao abuso infantil.
A disseminação de conteúdos abusivos, muitas vezes produzidos por meio de deepfakes, evidencia como a IA vem sendo instrumentalizada na criação de material sexualizado envolvendo menores, intensificando tanto os crimes virtuais quanto seus desdobramentos fora das telas. Nesse cenário, observa-se a perda quase imediata de controle sobre o destino das imagens divulgadas na internet, o que agrava sobremaneira o sofrimento das vítimas e dificulta as respostas jurídicas e sociais ao problema.
O processo judicial por porte de pornografia infantil, mesmo que simulada, segue uma série de trâmites legais previstos no ordenamento jurídico brasileiro, quando uma pessoa é encontrada com imagens íntimas de menores, ela responde com base no artigo 241-B do Estatuto da Criança e Adolescente, com pena de reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, que determina:
Art. 241-B. Adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente:
Ressalta-se ainda que, segundo o art 241-C, há a previsão de simulações, em vez de situações reais, como no caso de imagens geradas por inteligência artificial (IA), com pena de reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa:
Art. 241-C. Simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual.
Além disso, a legislação prevê penas ainda mais graves para os responsáveis diretos pela criação de imagens, sendo de reclusão de 4 (quatro) a 8 (oito) anos e multa.
Art. 240. Produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente.
No entanto MORAES, jurista e delegado da Polícia de Belo Horizonte MG, em 2013 já alertava sobre a impunidade dos casos:
“Não têm sido poucos os casos de flagrante por posse de pornografia infantil – com investigados que confessam serem ávidos “consumidores” daquele material ilícito e que possuem grandes quantidades de arquivos armazenados em seus computadores ou mídias – que terminam com o arbitramento de fiança, restituindo imediatamente à liberdade e ao convívio social pessoas com grande potencial lesivo à dignidade infanto-juvenil.”
Esse fenômeno não ocorre isoladamente. A hipersexualização da infância encontra solo fértil em uma cultura de ódio online, sustentada por algoritmos que priorizam engajamento mesmo à custa da violência, com base na investigação conjunta da Revista AzMina e do “Núcleo Jornalismo” (2025). O acesso cada vez mais precoce e desregulado à internet expõe crianças e adolescentes, especialmente meninas, a conteúdos e interações que promovem a objetificação de seus corpos, muitas vezes sob o disfarce da liberdade de expressão ou da neutralidade tecnológica. Os efeitos dessas dinâmicas ultrapassam a esfera virtual: reverberam em traumas psíquicos, em reações sociais minimizantes e em lacunas legais para a responsabilização dos ofensores.
Diante desse quadro, torna-se necessário refletir se a mera regulamentação penal é suficiente para enfrentar o problema, sobretudo considerando que essas condutas, por vezes, são subestimadas por não envolverem contato físico direto, ou se é preciso uma abordagem mais ampla, que envolva também dimensões éticas, sociais, educacionais e institucionais. O tema, por sua complexidade, também se insere no campo dos direitos difusos e coletivos: por um lado, pela necessidade de garantir um ambiente digital ético e seguro para toda a sociedade (direito difuso); por outro, pela obrigação de proteger grupos particularmente vulneráveis, como crianças e adolescentes, diante das novas formas de exploração sexual viabilizadas pela tecnologia (direito coletivo).
A violência associada ao abuso virtual de menores representa uma ameaça concreta à dignidade infantojuvenil, e seus efeitos ultrapassam o âmbito individual, atingindo o tecido social de maneira ampla. Assim, justifica-se a urgência de se garantir a efetividade dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes no ambiente digital, propondo-se a analisar criticamente a necessidade de intervenção estatal diante da criação e circulação de imagens íntimas não consentidas.
Ao mesmo tempo que o reconhecimento da violência digital como expressão contemporânea da violência de gênero ganha força, o corpo feminino, inclusive o infantil, continua sendo alvo de ataques simbólicos e psicológicos, agora mediados por tecnologias que ampliam o alcance e dificultam a responsabilização. A IA, ao ser utilizada para esses crimes, não é apenas ferramenta: torna-se vetor de aprofundamento de desigualdades, perpetuando padrões históricos de dominação em novos formatos.
Salienta-se ainda que, “a pedofilia é apenas uma entre outras possibilidades de denominar e compreender o fenômeno das “violências sexuais contra crianças e adolescentes” (LOWENKRON, 2013). Trata-se de uma condição patológica que demanda acompanhamento médico e psicológico, devendo ser encarada sob essa perspectiva. No entanto, é fundamental que isso não sirva como justificativa para isentar de responsabilidade aqueles que manifestam seus impulsos por meio da prática de crimes sexuais contra crianças e adolescentes.
*Isabel de Tássia é graduanda em Direito pela Universidade Federal de Jataí, onde estuda sobre os impactos da inteligência artificial na criação de imagem infantil de crianças e adolescentes, e estagia no escritório Álvaro Santos advocacia, escritório atuante especificamente na área do agronegócio na cidade de Jataí/GO.