Os vícios de fundamentação da prisão preventiva e o novo mecanismo para impetração de HC

*Kelvin Wallace Castro dos Santos e Alan Kardec Cabral Jr.

Com o advento da Lei n. 13.964/2019 (Lei Anticrime) houve a inclusão, no Código de Processo Penal, de dispositivo que visa assegurar limites sobre qualquer decisão judicial (art. 315, § 2º, do CPP), seja ela interlocutória, seja de mérito, como sentença ou acordão, referentes à fundamentação e à motivação das prisões preventivas.

De acordo com a doutrina, fundamentar é expor as razões de convencimento, elencando, por consequência, todos os fatores que influenciaram a tomada de posição, de maneira a garantir a exclusão do caráter voluntarista e subjetivo da atividade jurisdicional [1]. Quem isso garante é a Constituição Federal, ao dispor que todas as decisões serão fundamentadas, sob pena de nulidade (art. 93, IX).

Desse modo, o julgador, ao decretar a prisão preventiva, deverá fazê-lo de modo motivado e fundamentado. Não sendo essa a conduta, descumprir-se-ão os dispositivos supramencionados, restando, por lógica, inúmeras violações aos mandamentos constitucionais e legais, acarretando, com isso, a nulidade da decisão.

A prisão preventiva, sabe-se, pressupõe trajeto democrático de motivação, devendo a liberdade ser considerada como premissa maior nas decisões judiciais em face da presunção de inocência. Entretanto, sendo necessária, ao caso concreto, a prisão preventiva (exceção à regra), o esforço judicial deverá amparar-se na análise do cabimento dos requisitos da custódia cautelar, no tocante ao fumus commissi delicti, comungando paralelamente com o art. 282 do CPP (necessidade, adequação e proporcionalidade), bem como avaliando o periculum libertatis ao cenário real do caso, com especial supedâneo na contemporaneidade dos fatos que justifiquem a aplicação da medida adotada [2].

Assim, a novel determinação legal, trazida pela Lei Anticrime, visa dar mais relevância à qualidade da fundamentação necessária para decretar a prisão preventiva. Nesse ponto, o dispositivo busca estabelecer um standard elevado sobre qualquer decisão judicial, enaltecendo um conjunto de exigências entre os incisos I ao VI do art. 315, § 2º, do CPP [3], enfrentando, em sua redação, as intercorrências que deverão conduzir a ausência de fundamentação.

À vista disso, não será considerada fundamentada, sendo passível de anulação a decisão que tão somente (i) indica, reproduz ou parafraseia texto de lei, sem, contudo, estabelecer uma relação lógica-causal ao caso concreto; (ii) emprega conceitos jurídicos indeterminados (o que seria a famigerada ordem pública?); (iii) invoca motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão – ou seja, a conhecida decisão “forma para todo pé” (STJ/ RHC 125.461); e, também, (iv) não enfrenta todos os argumentos levados pelas partes. Além dessas hipóteses, serão nulas as decisões que (v) apenas invoquem precedentes ou súmulas a esmo ou (vi) ignorem súmula, jurisprudência ou precedente invocados pelas partes sem, todavia, demonstrar a existência de distinção, se for o caso, ao julgamento concreto.

Nessa linha de raciocínio, devem os órgãos de revisão declarar a nulidade de decretos prisionais carentes de obediência ao comando legal, visto não ser incomum, na prática, a verificação de decisões genéricas, lacônicas e imprecisas, sustentadas em meras conjecturas, apoiadas na suposta gravidade abstrata do delito, o que, salvo melhor juízo, faz parte do preceito primário do crime.

Não bastasse isso, algumas dessas decisões sucumbem à amplitude das forças exteriores, tais como o clamor público, a comoção social, a garantia da credibilidade da Justiça e a traiçoeira pressão/uso da mídia.

Destaca-se, por necessário, que a prisão preventiva somente será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar diversa da prisão, observado o art. 319 do CPP, o que deverá ser justificado de forma fundamentada nos elementos presentes do caso concreto e de forma individualizada (art. 282, § 6º, do CPP). A propósito, cabe reforçar que carece de fundamentação válida a imposição de medidas cautelares diversas da prisão sem nenhum dado significativo de cautelaridade.

É imprescindível, por conseguinte, na decisão, a abordagem do cabimento ou não das medidas cautelares diversas da prisão, sob pena de esta ser nula (STJ/RHC 036.443), em razão da claríssima omissão de pressuposto alternativo à prisão.

Por tudo isso, o descumprimento dos dispositivos mencionados afronta diretamente os mandamentos constitucionais e legais. É dizer: a omissão ou o vício de motivação de qualquer decisão judicial é nulidade que recai sobre elemento essencial do ato processual penal, imaculado à condição de princípio constitucional. A deficiência de fundamentação é, portanto, categoria de defeito cuja cominação de nulidade encontra-se expressa constitucionalmente, o que provoca, consequentemente, a nulidade da decisão judicial (art. 564, V, do CPP) [4].

Com isso, temos que o meio legal e eficaz de se combater a inidônea fundamentação da decisão segregatória seria o habeas corpus ou os correlatos recursos ordinários. Diversos são os precedentes de admissão do remédio heroico, realizados, inclusive, depois da restrição ao âmbito de admissibilidade, operada a partir de agosto de 2012, para controlar decisões carentes de fundamentação. No TJ-GO, podemos citar o HC n. 5145761-19 e, no STJ, o RHC n. 123.424/MT.

Nesse cenário, nasce uma porta sólida para a moderna impetração de habeas corpus, com o propósito de anular a decisão inidônea, pois a ausência de fundamentação conduzirá à nulidade absoluta do decreto de prisão preventiva, porquanto se trata de violação de formalidade estabelecida pela sagrada Constituição (arts. 5º, LXI, e 93, IX) para garantia do direito de liberdade; por certo, a ordem desfundamentada constitui prisão ilegal [5].

Por derradeiro, não se pode olvidar que tal ordem seria apenas e simplesmente ilegal, já que, caso constatada a presença de violações intencionais aos dispositivos legais, é possível, viável e justa a configuração de crime de abuso de autoridade (Lei de Abuso de Autoridade, art. 9º) [6].

*Kelvin Wallace Castro dos Santos é  advogado criminalista e professor universitário. Especialista em Direito Penal e Processo Penal (Damásio-GO). Especialista em Docência Universitária (Unialfa-GO). Membro da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – Abracrim-GO. E-mail: kelvinwallace.adv@gmail.com

*Alan Kardec Cabral Jr. é mestre em Direito. Especialista em Criminologia, Direito Penal e Processo Penal.  Advogado criminalista e professor. E-mail: alanjrcabral@gmail.com

REFERÊNCIAS

[1] LENART, André. O STF e a fundamentação do decreto de prisão preventiva. Revista SJRJ, Rio de Janeiro, n. 22, p. 61-80, 2008.

[2] ROSA, Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 6. ed. rev., atual. e ampl. Florianópolis: EMais, 2020. p. 451-452.

[3] LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 700.

[4] ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Teoria da nulidade no Processo Penal. 1. ed. São Paulo: Noeses, 2016. p. 535.

[5] GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no Processo Penal. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 359.

[6] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo Penal. 3. ed. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 552.