Pedro Campos*
Em 2006, Nelly Furtado, Timbaland e Nate Danja Hills compunham e lançavam o sucesso global “Say it right”. Em 2022, os artistas brasileiros Treyce e WK, supostamente inspirados pela canção canadense, lançam “Lovezinho”. É em 2023, porém, que a canção atinge seu ápice, muito pelo fato de o influenciador digital Xurrasco ter viralizado nas redes dançando de forma contagiante.
A cantora Nelly Furtado até colaborou: dançou a coreografia de Xurrasco ao som do hit brasileiro. Porém, de acordo com a grande mídia, a Sony Music Publishing (Brazil) – titular dos direitos patrimoniais sobre a canção “Say it right” no Brasil – não teve tanto bom humor. Essa é uma questão importante acerca de direitos autorais: muitas vezes, o titular dos direitos de exploração comercial de uma canção não é o seu autor, mas sim uma gravadora cessionária dos direitos. Sendo assim, mesmo que o autor não esteja particularmente incomodado com a suposta infração ou plágio, ainda assim o titular dos direitos pode tomar medidas contra os infratores.
Recentemente, a Editora norte-americana notificou os representantes dos artistas brasileiros, visando que seja reconhecida a co-autoria de Nelly Furtado, Timbaland e Nate Danja Hills, com os consequentes royalties devidos pela participação.
A situação da obra “Lovezinho” é bastante comum em tempos de redes sociais, em que músicas se tornam virais espontaneamente, ganhando relevância comercial bastante improvável em outros tempos. Em 2021, por exemplo, James Blunt acusou a dupla Ávine e Matheus Fernandes de suposto plágio pela canção “Coração Cachorro”, que também havia viralizado na rede Tik Tok. As partes chegaram a um acordo amigável, em que o britânico foi considerado co-autor e passou a receber royalties pela canção.
Diferentemente do que ocorreu no caso de “Coração Cachorro”, de acordo com o Portal G1, a Sony e os representantes de Treyce e WK não chegaram a um acordo. Por isso, a Sony conseguiu, por meio dos processos internos das plataformas, derrubar os vídeos e fonogramas disponíveis online.
Existem algumas formas de um titular de direitos patrimoniais sobre uma obra fonográfica lidar com supostos infratores. Em geral, sugere-se que litígios judiciais sejam evitados sempre que possível – processos podem ser caros, demorados e inseguros quanto ao resultado. Por isso, deve-se sempre prezar pelas resoluções alternativas de conflitos, como mediação, negociação e até mesmo arbitragem, em certos casos.
A medida imediata mais comum por parte de titulares que consideram ter direitos violados é o envio de uma Notificação Extrajudicial, que funciona como uma espécie de carta buscando solucionar a questão sem que seja preciso o ingresso de uma ação judicial. Muitas vezes, o envio dessas notificações também podem ser um sinal de que a Notificante está disposta a negociar.
Um passo um pouco mais drástico é buscar fazer cessar a infração por meio das próprias plataformas, através de um sistema de flag e de take down, pedindo-se a retirada de ar da publicação ou mesmo a apropriação da monetização gerada pelas visualizações.
Quando a controvérsia atinge esse nível de abrasividade entre as partes, não é incomum que o passo seguinte e mais drástico ocorra: o ajuizamento de uma ação judicial, requerendo que o Poder Judicial declare a autoria adequada, puna os infratores e determine indenizações e o estabelecimento da correta remuneração dos titulares.
Independentemente do que virá a ocorrer nos próximos passos desse caso concreto, situações como de “Lovezinho” e de “Coração Cachorro” mostram como a Lei de Direitos Autorais é defasada em relação ao mundo digital. O sistema de Direitos Autorais é baseado em um acordo internacional do século XIX, quando não existia internet, serviços de streaming, redes sociais e nem mesmo discos de vinil. A legislação brasileira, baseada nesse acordo, data de 1998, quando era inimaginável que as formas de acesso cultural seriam tão capilarizadas por meio de redes sociais.
Porém, não se propõe aqui uma ode saudosista. O pensamento de que “não se faz mais música como antes” e de que “ninguém mais é original” não encontra respaldo na realidade. Desde que o mundo é mundo, nem mesmo um gênio cria no vácuo. Todos os artistas se inspiram naqueles que vieram antes deles. A band Arctic Monkeys se inspirou nos Oasis, que se inspiraram nos Beatles, que se inspiraram em Little Richards, que se inspirou em Rosetta Tharpe.
Inspiração, portanto, sempre ocorreu. O maior problema jurídico (que sempre existiu) é detectar, no mundo real, quando se trata de uma mera inspiração comum e desejável para o avanço das artes, e quando se trata de uma infração de Direitos Autorais que prejudica os interesses justos de artistas e titulares de direitos.
Parte de entender o que é uma simples inspiração e o que é uma infração tem a ver com o fato de que a Lei de Direitos Autorais permite que qualquer um use pequenos trechos de obras alheias. Porém, a lei e os Tribunais nunca definiram com precisão o que são pequenos trechos. Lendas como “é permitido usar até três compassos de qualquer música” não passam de mitos. Tudo que a lei fala é que pequenos trechos podem ser usados. Mas, o que é pequeno trecho? Dez segundos de uma música de oito minutos é um pequeno trecho? E 10 segundos de uma música de um minuto, continua sendo um pequeno trecho? Faz diferença se esses 10 segundos serão usados em um novo vídeo de 20 segundos, ou então em um novo vídeo de 2 horas? Essas são perguntas que não são bem respondidas pelo Direito em lugar nenhum do mundo.
Essa dificuldade se agrava a cada dia. De acordo com um relatório da Midia Research, as músicas mais bem sucedidas estão ficando cada vez mais curtas. No ano de 2000, a média de tempo das músicas do Top 10 da Billboard era de 4 minutos e 22 segundos. Dos 10 maiores sucessos de 2022, quase 40% tinham menos de três minutos, em comparação com 4% em 2016. Ainda nesse contexto, muitas redes sociais (como Tik Tok) têm presado por vídeos ainda mais curtos, de menos de 30 segundos de duração.
No caso de “Lovezinho”, a canção brasileira possui 2 minutos e 46 segundos de duração. Porém, imagine-se que a música contivesse apenas os 16 segundos dançados por Xurrasco em seu viral – sequer faz sentido pensar em termos de pequeno ou longo trecho em uma época na qual o tempo real de apreciação de uma obra é de menos de 20 segundos?
Direitos Autorais sempre foram mares difíceis de navegar. Porém, com a realidade que se transformou o mundo digital e o padrão de acesso cultural, as questões se tornam cada vez mais complexas, e a assessoria jurídica mais imprescindível desde o começo do processo criativo, elitizando ainda mais o privilégio de se expressar artisticamente.
As dificuldades não estão apenas em entender quando é preciso ser autorizado a usar um trecho de certa obra. Por vezes, é até mesmo difícil saber para quem pedir autorização. A 17 anos atrás, a música Say it Right, além de composta por Nelly Furtado, Timbaland e Nate Danja Hills, já contou com a participação de 10 editores e subeditores. Esses dados refletem a complexidade do mercado fonográfico atual, em que é cada vez mais comum a participação de múltiplos profissionais em uma cadeia produtiva que beira o industrialismo. Essa cadeia, cada vez mais robusta – quase fordista – gera um emaranhado de contratos complexos e relações jurídicas imprevisíveis, quase impossíveis de serem entendidas sem o auxílio de um profissional altamente especializado.
Novamente, parece evidente a falta de adequação da lei com a realidade atual: um sistema pensado em uma época de autoria romântica, quando não existia uma indústria fonográfica profissional em escala de produção em massa, não consegue lidar bem com a complexidade das etapas de produção atuais, dificultando a vida dos profissionais da música e daqueles usuários (como artistas e influencers) que querem, de algum modo, criar legalmente inspirando-se por outras obras.
Um exemplo da inadequação da legislação com a cadeia produtiva musical atual é que até hoje o Direito não prevê como figura jurídica específica o produtor musical, que é uma personagem central na indústria. É extremamente difícil entender até que ponto Quincy Jones, por exemplo, pode ser considerado co-autor do álbum Thriller. Ou, até que ponto George Martin era co-autor de todos os álbuns dos Beatles.
Ou seja: Em um mundo em que a criação musical é profissional e fragmentada entre dezenas de profissionais, como saber qual o grau de participação necessário no resultado final para que um indivíduo envolvido na produção passe a ser considerado autor? Essa é mais uma pergunta que o Direito Autoral atual não responde com clareza, deixando milhares de indivíduos desamparados e à mercê de negociações contratuais muitas vezes predatórias.
Esse problema, porém, não aflige só aos profissionais, mas a toda sociedade. Saber quem são os reais autores de uma obra pode implicar em saber a quem pedir autorização. A dificuldade legal de determinar quem é autor de uma obra é cada vez maior. Consequentemente, se torna quase impossível ter certeza quando e a quem pedir autorização para usar uma obra sem a ajuda de uma equipe jurídica, que se torna cotidianamente mais necessária para se produzir conteúdo com responsabilidade, independentemente da mídia escolhida.
*Pedro Campos é advogado especialista em propriedade intelectual e direitos autorais, membro do comitê de Copyright da International Trademark Association