O tratamento humanizado da vítima: reflexões sobre o crime de violência institucional

*Celeste Leite dos Santos

Recentemente tivemos a aprovação da Lei n. 14.321, de 31 de março de 2022 que inclui a vitimização secundária e o tratamento vexatório dispendido a testemunhas dentre as hipóteses de crime de abuso de autoridade. Em termos leigos, o novo dispositivo penal adota fórmula simbólica de constrangimento dos poderes instituídos, ao invés de tratar o cerne da questão: a ausência de reconhecimento de direitos das vítimas em nosso ordenamento jurídico e capacitação em conteúdo preventivo ao trauma por todos aqueles que intervenham na cadeia de acolhimento de vítima de crimes, desastres naturais e calamidades públicas. De acordo com o novel dispositivo:               

Art. 15-A. Submeter a vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade:

I – a situação de violência; ou

II – outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.

  • 1º Se o agente público permitir que terceiro intimide a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena aumentada de 2/3 (dois terços).
  • 2º Se o agente público intimidar a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena em dobro.”

 Ad primum, temos que a política pública instituída é o tratamento humanizado às vítimas de crimes, violentos ou não e; proteção as testemunhas de crimes violentos, como casos de extorsões mediante sequestro, roubo, estupros e outros delitos praticados com violência. A iniciativa fortalece a urgência na regulamentação do Estatuto da Vítima (PL 3890/2020) que aguarda seja pautado pelo Presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira. O Direito Penal Contemporâneo privilegia fórmulas preventivas à prática de crimes, em suas dimensões geral (sociedade) e especial (individual) em detrimento de fórmulas de tendência retributiva. Isso implica na adoção de nova cultura que contemple capacitações dos agentes públicos e, além disso, superação da visão do processo penal como uma relação binária entre Estado e Ofensor, contemplando os demais sujeitos intervenientes do processo, tais como as vítimas e testemunhas. Tal lógica é coerente com o Estado Social e Democrático de Direito, uma vez que os membros integrantes da sociedade não são súditos sob os quais o Estado detém o poder sobre sua autonomia privada, mas cidadãos e, portanto, merecedores de dignidade e respeito.                

Ad secundum, o verbo utilizado reduz drasticamente as hipóteses de sua aplicação prática, pois submeter significa anular a autodeterminação da vítima ou testemunha, por meio da dominação, sujeição ou por esta estar subjugada; ou reduzir sua esfera de liberdade a obediência, dependência. Em outros termos, seria render a vítima ou testemunha ao crivo do delegado, promotor de justiça, defensor público, advogado ou juiz responsáveis pela prática do ato. O meio de execução desse crime seria os procedimentos repetitivos, desnecessários ou invasivos. A correta exegese desse novel diploma legal seria o de impedir a reiteração dos procedimentos levados a cabo durante a fase administrativa conduzida pela autoridade policial ou Ministério Público, devendo haver motivação adequada dos atos requeridos em juízo – v.g., se a vítima foi ouvida perante a autoridade policial e o seu depoimento foi gravado, não há qualquer dúvida quanto ao exato teor de sua manifestação de vontade, sendo descabido que o promotor de justiça, defensor público ou advogado insistam na sua oitiva em juízo, salvo se houver apresentação de motivação adequada.                          

 Em outras palavras, a iniciativa legislativa implica na admissão de que alcançamos estágio civilizatório em que ao invés de se presumir a ilegalidade dos atos praticados na fase inquisitorial, deve-se presumir a sua legalidade, devendo as partes ter o ônus de indicar qual seria o ponto de dúvida, contradição ou complementação que reputam necessária a nova oitiva, sem que isso implique em mera reiteração. Não é preciso ser técnico para saber que reviver a experiência traumática sofrida como vítima de crime ou vivenciada pela testemunha de crimes violentos implica na reiteração de atos (nova oitiva judicial) e, portanto, são invasivos, repetitivos e desnecessários. A frágil alegação de direito a contraditório tampouco pode servir de escudo para a prática da violência estatal, já que este não pode ser imotivado ou vil, mas se fazer acompanhar da justificativa pertinente. 

Ad tertium, o dispositivo vincula expressamente o novo tipo penal aos crimes de abuso de autoridade definidos pela Lei n. 13.869, de 5 de setembro de 2019 que considera autoridade agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído. Para tanto, se faz necessária a presença de finalidade específica (dolo específico) de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal. Ao definir os sujeitos ativos, a lei de abuso de autoridade esclarece que se trata de crimes próprios, a saber:

Art. 2º  É sujeito ativo do crime de abuso de autoridade qualquer agente público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território, compreendendo, mas não se limitando a: I – servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas; II – membros do Poder Legislativo; III – membros do Poder Executivo; IV – membros do Poder Judiciário; V – membros do Ministério Público; VI – membros dos tribunais ou conselhos de contas. Parágrafo único.  Reputa-se agente público, para os efeitos desta Lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função em órgão ou entidade abrangidos pelo caput deste artigo (grifamos).

A Constituição da República coloca a advocacia como indispensável para a administração da justiça, sendo inviolável por suas manifestações e atos (art. 133, CR). Com relação a essa inviolabilidade do advogado, o Superior Tribunal de Justiça, por meio da 3ª e 4ª Turma já vinha estabelecendo limites, ao indicar que essa imunidade não dá o direito a ofensa a qualquer das partes intervenientes no inquérito policial ou processo, fixando ainda indenização por danos morais. Pela nova sistemática estabelecida pela Lei de Abuso de Autoridade, podem esses ainda responder pela prática desse crime, já que não exercem função privada, mas múnus público, sendo função essencial a administração da própria justiça. Logo, devem ser considerados também como incluídos na nova sistemática instituída pela lei que criou o crime de violência institucional.                        

Soma-se a esse entendimento o fato de que a dialética processual adotada determina que as partes devem formular seus questionamentos diretamente a vítima e testemunhas, in verbis:

Artigo 212. as perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida. Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.

Logo, o nosso sistema privilegia o sistema acusatório, no qual a inércia judicial é tida como uma das garantias do acusado a um julgamento justo. Tal sistemática, implica maior responsabilidade dos demais sujeitos intervenientes no processo, seja a acusação pública, privada (queixa-crime) ou do lado defensivo.       

De se destacar ainda a previsão da prática da modalidade omissiva imprópria pela qual além das práticas dos atos anteriores o promotor de justiça, juiz de direito ou autoridade pública permita que terceiro intimide vítima de crime violento causando revitimização. Porém, a sistemática adotada pelo legislador nos parece que inviabiliza por completo a sua possibilidade de aplicação prática. Além de não prever a modalidade culposa, poderíamos imaginar, por exemplo, uma audiência de estupro no qual são formuladas perguntas misóginas relacionadas a virgindade ou recato da vítima. Por se tratar de delito instantâneo o máximo que se pode exigir é que o promotor de justiça solicite o indeferimento da pergunta e o juiz aceite o requerimento ou vede a sua resposta de ofício, consoante aliás já havia a previsão do art. 212 do Código de Processo Penal. Portanto, consumada a revitimização a resposta à pergunta indevida constituiria mero exaurimento do crime. Ainda que assim não fosse não consigo imaginar hipótese em que a autoridade tenha o dolo específico de permitir a intimidação da vítima ou o faça por mero capricho. Nessa linha de raciocínio, a revitimização por violência institucional exigirá a existência de duas condutas comissivas, não havendo que se falar em crime de violência institucional em razão de conduta omissiva imprópria. A majorante prevista, portanto, é incompatível com a sistemática da Lei de Abuso de Autoridade e, data máxima vênia, não andou bem o legislador ao vinculá-lo ao referido diploma legislativo.

Por fim, a última crítica que se faz ao novo tipo penal é a ausência de previsão da violência institucional praticada interna corpore, ou seja, contra um membro do Ministério Público, autoridade policial, membro do Poder Judiciário, membro do Congresso Nacional ou integrante do Poder Executivo visando dissuadi-lo de tomar as medidas cabíveis diante de quadro de vitimização sofrida, ou ainda em razão de preconceito de raça e cor, em razão do sexo ou orientação sexual. Não podemos ignorar, por exemplo, que em matéria de paridade entre homens e mulheres, os detentores do poder de decisão ainda são na sua esmagadora maioria homens branco heteronormativos, o que permite concluir que de forma consciente ou não, a tendência a manutenção do status quo permanece evidente.

*Celeste Leite dos Santos é promotora de Justiça, gestora do Projeto de Acolhimento de Vítimas, Análise e Resolução de Conflitos (AVARC), idealizadora do Estatuto da Vítima (PL n. 3.890/2020), doutora pela USP, mestre pela PUC/SP, especialista pela Universidade de Coimbra e Escola Superior do Ministério Público de São Paulo e Membro do MPD.