O rompimento dos artistas com seus empresários

*Leonardo Honorato Costa

  1. A RAZÃO DA PUBLICAÇÃO DESTA ANÁLISE

O mercado artístico, em especial o musical, foi marcado em seu passado recente pelo oligopólio de grandes escritórios no agenciamento da carreira daqueles que se propunham a nele ingressar ou nele se manter. O que se justificava pela influência e domínio destes escritórios, que tornavam a permanência dos artistas em seus castings uma condição sine qua non ao sucesso!

Alguns fatores, porém, como a evolução do digital, a superlotação dos castings destes escritórios, a ciência de inadimplementos atribuídos a alguns destes empresários e, com mais razão, o maior interesse dos artistas com a gestão, culminaram, nos últimos anos, com o enfraquecimento deste oligopólio e o início de uma tendência de autogestão das carreiras pelos artistas, que, progressivamente, vêm deixando os antigos escritórios.

Como resultado, o Judiciário passou a receber um considerável número de ações versando sobre a dissolução destes artistas com seus agentes – temática até então não muito corriqueira nos corredores dos tribunais brasileiros.

Sendo, portanto, uma temática pouco explorada, com rara bibliografia especializada e com nuances que merecem um cuidado jurídico – diante da especificidade com a qual estas relações jurídicas são formalizadas na prática, temos experimentado muita confusão e divergência nas discussões jurídicas sobre os efeitos desse rompimento.

Esta análise, portanto, é feita no intuito de contribuir para esse polarizado debate, após ter representado alguns desses players artísticos em suas dissoluções e muito estudado sobre como o Judiciário tem enfrentado o assunto.

  1. OS CONTORNOS JURÍDICOS DA RELAÇÃO ENTRE EMPRESÁRIOS E ARTISTAS

Pois bem.

Antes de serem analisadas as consequências do rompimento da relação jurídica havida entre artistas e seus respectivos empresários, há que ser antes identificada, por pressuposto lógico, a formatação jurídica de tal relação.

Formatação que é quase sempre a mesma: celebra-se um Contrato de Agenciamento, no qual são definidas as regras da relação, e, concomitantemente ou pouco tempo depois, cria-se uma Sociedade para “instrumentalizar” as regras do agenciamento, facilitando a criação de centro de custos e a posterior distribuição dos lucros da operação (na proporção definida no contrato de agenciamento).

A celeuma, no entanto, é gerada pela usual omissão, nestes instrumentos, de regras claras e conexas que versem sobre a extinção da relação artística. Sem regras claras e que dialoguem, surge a dúvida: Quais as consequências jurídicas ao Contrato de Agenciamento e à Sociedade criada com o fim da relação artística?

É justamente essa a resposta que se busca na presente análise. Vejamos.

O primeiro contorno a ser delineado é que, nessa regra geral, estamos diante de dois contratos: um Contrato de Agenciamento e um Contrato de Sociedade. Contratos estes que interligam-se, relacionando-se em conjunto. São, portanto, conexos. Quanto ao tema interpretação e a integração de contratos conexos, o professor Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa[1] nos traz o pondo nodal a ser objeto de busca:

“Os problemas de interpretação e de integração destes contratos devem ser resolvidos a partir da identificação de qual seja a ideia mãe, ou seja, o núcleo econômico básico que une todas as operações, seja quando elas se desenvolvem em série ou cadeia, seja quando isto acontece segundo a estrutura de uma rede do tipo teia de aranha.

A técnica de interpretação dos contratos conexos, assim, exige que seja aferida qual a ideia nodal que os vinculam. Em outros termos, há que se buscar a real “intenção” das partes quando firmaram esses contratos, como determina o artigo 112 do Código Civil.

Nesse sentido, resta evidente que as Sociedades criadas entre Artistas e seus Empresários nada mais são do que pessoas jurídicas criadas para a instrumentação dos respectivos contratos de agenciamento. Cria-se um CNPJ para a operação, todas as despesas são lançadas neste CNPJ, bem como as receitas são nele inseridas e, ao final, distribui-se tão somente o lucro da operação, nos percentuais definidos no Contrato de Agenciamento.

Não há como, portanto, dissociar a Sociedade criada do Contrato de Agenciamento, sob pena de desvirtuar a real intenção das partes quando de sua constituição! O que, em complemento, importa dizer que as Sociedades Artísticas, dessa forma, constituem relação jurídica, literal e intencionalmente, acessória à relação jurídica principal de agenciamento.

Ora, é inegável que há uma hierarquia do Contrato de Agenciamento sobre o Contrato de Sociedade, pois, mesmo em caso de encerramento da Sociedade, o Contrato de Agenciamento subsistiria, podendo, inclusive, ser executado pelas pessoas físicas que o pactuaram.

Podem os artistas e seus empresários, por exemplo, constituírem e encerrarem, sucessivamente, inúmeras Sociedades para instrumentalizar o seu Contrato de Agenciamento, sem que este se encerre com a dissolução da primeira Sociedade instrumentalizadora.

Sendo assim, o segundo contorno é inegável: o Contrato de Sociedade é, nesse contexto de conexão, acessório ao Contrato de Agenciamento.

03 . O CONTRATO ACESSÓRIO SEGUE O PRINCIPAL: A DISSOLUÇÃO TOTAL DA SOCIEDADE EM VIRTUDE DA EXTINÇÃO DO CONTRATO DE AGENCIAMENTO

Eis, em resumo, os contornos da relação jurídica entre os Artistas e seus Empresários: o Contrato de Sociedade entre eles em regra firmado é acessório ao Contrato prévio de Agenciamento! O que isso importa dizer quanto ao tema dissolução?

Ora, sendo acessória ao Contrato de Agenciamento, a existência das Sociedades Artísticas pressupõe a existência do Agenciamento, seguindo, assim, a sua sorte (art. 92 do Código Civil). Encerrado o Agenciamento, não há outro caminho que não o encerramento da Sociedade.

Essa interpretação, outrossim, é reforçada pelas regras previstas no artigo 113 do CC. Basta analisar o comportamento das partes após a constituição das Sociedades (art. 113, §1º, I). Desde que constituídas as Sociedades Artísticas, as proporções remuneratórias do agenciamento são repassadas aos envolvidos via distribuição de lucros daquelas. Caso fossem relações distintas, o agenciamento deveria ser remunerado em separado.

Imaginemos outro quadro: encerrado o agenciamento, por culpa do empresário, suponhamos que este continuasse como sócio da Sociedade Artística, sem que fosse esta dissolvida e estando o artista vinculado a esta. Neste caso, o empresário faltoso continuaria recebendo os percentuais do agenciamento mesmo este tendo sido rompido!

A relação jurídica só se compatibiliza, portanto, quando analisada em conjunto e com este grau de hierarquia do Contrato de Agenciamento para com o contrato de Sociedade.

Findo o contrato de agenciamento, não resta outra alternativa que não a Dissolução Total da Pessoa Jurídica criada para instrumentalizá-lo.

  1. A DISSOLUÇÃO TOTAL DA SOCIEDADE ARTÍSTICA QUANDO ENCERRADO O CONTRATO DE AGENCIAMENTO

Essa constatação silogística fica ainda mais clara quando é analisada sobre a ótica das regras legais acerca da Dissolução Total das Sociedades. Isso porque, uma de suas causas é justamente a inexequibilidade do fim social, nos termos do Código Civil:

Art. 1.034. A sociedade pode ser dissolvida judicialmente, a requerimento de qualquer dos sócios, quando:

(…)

II – exaurido o fim social, ou verificada a sua inexequibilidade.

A finalidade das Sociedades Artísticas, como abordado, é instrumentalizar, dar vida e efetividade, às regras do Contrato de Agenciamento. Uma vez, portanto, rescindido o Contrato de Agenciamento, “entrelaçado” com o fim social das Sociedades Artísticas, há que se reconhecer pela inexequibilidade do objeto social destas.

Os comercialistas Walfrido Jorge Warde Júnior e Ruy de Mello Junqueira Neto, em seu livro “Direito Societário Aplicado”, citam, justamente, como causa típica de Dissolução Total por inexequibilidade do fim social, o encerramento do negócio jurídico que motivou a constituição da sociedade:

“A rescisão do contrato de prestação de serviços, que deu causa à constituição da sociedade e às suas atividades, caracteriza o exaurimento do fim social e fundamenta, na forma do art. 1.034, II, do CC, a ação de dissolução total da sociedade.”

Como exemplo, citam a Apelação Cível nº 0003183-02.2009.8.26.0248 do TJSP, do qual colaciona-se trecho que se encaixa como luva à mão ao presente caso:

“A dissolução completa é uma solução que se impõe. Trata-se de um clássico exemplo de constituição de sociedade prestadora de serviços para uma finalidade transitória, qual seja, atender interesses localizados (serviços de radiologia no Hospital Santa Ignês e em atenção aos interesses da MRI Métodos Radiológicos), sendo que a partir do momento em que o autor rescindiu a prestação de serviços a sociedade perdeu o sentido e ficou inativa.”

Desta feita, com o encerramento do Contrato de Agenciamento, há que se reconhecer a inexequibilidade do fim social das Sociedades Artísticas, criadas e mantidas para executá-lo, nos exatos moldes do artigo 1.034, II, do Código Civil.

  1. CONSEQUÊNCIAS E CONSTATAÇÕES PRÁTICAS QUE CORROBORAM A CONCLUSÃO DA ANÁLISE

Quando se encerra uma relação entre Artista e Empresário, deste modo, há que se analisar as regras de sanção do Contrato de Agenciamento. A Sociedade Artística será dissolvida totalmente, sem qualquer apuração de haveres, ocorrendo, tão somente, a partilha dos do remanescente, se o ativo superar o passivo.

As multas compensatórias e eventuais reparações, assim, serão pautadas no que prevê o Contrato de Agenciamento, e não sob o aspecto societário de uma apuração de haveres.

Ora, não tratar ambas as relações jurídicas como uma só (tal como foram concebidas em sua origem) acarretaria uma indesejável duplicidade de sanções ou remunerações, pois o rompimento geraria proventos distintos sobre um mesmo fato: multa pelo encerramento do agenciamento e apuração de haveres pela condição de sócio.

Por isso que, atentando-se à interpretação escorreita da relação jurídica em questão, encerrado o agenciamento, não há outra solução (pautada na boa-fé e na intenção das partes) que não a dissolução total das sociedades criadas para sua execução, liquidando-se entre os sócios o patrimônio que elas possuem e apurando quem deve ser responsabilizado pela quebra do contrato de agenciamento, com a aplicação das multas e consequências previstas neste.

Dessa feita, a consequência patrimonial do encerramento do agenciamento artístico deve ser analisada sobre o aspecto contratual do Agenciamento, não se considerando os reflexos do ponto de vista societário, uma vez que a consequência societária será a Dissolução Total da Sociedade, não se apurando haveres, nem se valorando projeções de lucros da atividade artística, que, ao final, pertence aos artistas e não à Sociedade.

*Leonardo Honorato Costa é advogado. Master of Laws em Direito Empresarial pela FGV/RJ. MBA em Governança Corporativa e Compliance pela FGV/RJ. Professor de Graduação e Pós-Graduação na área de Direito Empresarial.Co-autor do livro Direito Empresarial: novos enunciados da Justiça Federal. Membro Fundador e atual Diretor do Instituto de Direito Societário de Goiás – (IDSG). Árbitro em Direito Societário

[1] VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Direito Comercial: teoria geral do contrato. vol. 4., 2. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2014. p. 492.