*Marcelo Bareato
Que somos um país de grandes proporções e de difícil fiscalização, isso já é lugar comum e ouvimos todas as vezes que alguém tenta justificar o injustificável.
Esse injustificável, quando atinge de maneira mais gravosa a sociedade, faz com que o ramo mais severo do direito se manifeste, ou seja, o Direito Penal. Esse mesmo Direito Penal que descreve crimes e culmina penas, também chamado de direito material, anda de mãos juntas com o Direito Processual Penal, ou direito formal. Assim, enquanto um descreve os crimes, o outro indica qual o tipo de processo e julgamento cabe para cada caso. Dito de outra forma, é o Direito Processual Penal a forma com a qual o Direito Material se exterioriza.
Ocorre que essas duas variantes do direito brasileiro nada podem fazer se não houver estrita obediência a lei maior, a qual chamamos de Constituição Federal. É ela quem dita quais são os direitos e garantias fundamentais que devem ser assegurados a todos os brasileiros e, em especial, aqueles que desrespeitam as principais regras de convivência e também por isso, ficarão a mercê do Direito Penal e Processual Penal.
É exatamente com essa ideia inicial que se desenvolve nosso artigo de hoje, traçando os caminhos de cada item apontado para que possamos entender a razão de existirem entraves ao que conhecemos por Democracia.
Comecemos com o ensinamento de José de Faria Costa, catedrático da Universidade de Coimbra, quando escreveu sua obra Direito Penal e Globalização (2010). Para ele: “todos sabemos que nada nem ninguém para o caudal do rio da história e que o direito penal não é nem nunca foi margem desse rio, antes força vivificadora da torrente da vida, coletiva e individual, que os homens e as mulheres, ao longo de milênios, foram construindo e que, ao fim e ao cabo, coincide com a própria história”.
Se assim o é, e o Direito Penal é a força de contenção dos desmandos das sociedades direcionado a punir aqueles que cometem as mais gravosas infrações, o mínimo que se espera desse infrator é que conheça o que faz e se determine através desse conhecimento (imputabilidade penal).
É a imputabilidade penal um dos elementos da culpabilidade (juízo de censura ou reprovação que se estabelece sobre um fato típico e ilícito e que tem por pressupostos a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa), mas curiosamente o legislador brasileiro, acompanhando a tendência da maioria das legislações ditas modernas, não estabeleceu um conceito para ela, preferindo, apenas, conceituar o que seria um inimputável e um semi-imputável em matéria criminal. A imputabilidade passou, assim, a ser um conceito obtido pela exclusão dos dois anteriores.
As explicações anteriores são importantes na medida em que nos fornecem a ideia de que todos podemos cometer crimes, mas para ser autor e receber pena, necessariamente o agente deverá ter consciência do que está fazendo ou fazia no momento da conduta
Não é por menos que a teoria do domínio do fato (qualquer acontecimento que, levado a comparação com o modelo descritivo legal, se existirem entre eles perfeita adequação, dará lugar a conduta) criada em 1939, por Hans Welzel, indica que autor do fato é aquele que tem a capacidade de fazer continuar e de impedir a conduta. Portanto, percebam, é o agente que tem ciência da conduta e se determina de acordo com esse conhecimento. É, pois, como já dizia Welzel, em sua obra Derecho penal alemán: “Senhor do fato é aquele que o realiza em forma final, em razão de sua decisão volitiva. A conformação do fato mediante a vontade de realização que dirige em forma planificada é o que transforma o autor em senhor do fato”.
Essa concepção é por demais interessante na medida em que permite ampliar o conceito de autor e dá, mesmo a aquele que não realizou o verbo núcleo do tipo, a possibilidade de ser punido como autor do fato porque tem o controle final da atividade criminosa.
Dito isso, se por um lado a teoria do domínio do fato permite tamanha ampliação das tradicionais teoria que tratam da autoria (aquele que realiza o verbo núcleo do tipo, por exemplo, matar), coautoria (aquele que ajuda a realizar o verbo núcleo do tipo, por exemplo, segura a vítima para o autor esfaquear) e participação (aquele que auxilia sem nunca ingressar no verbo núcleo do tipo, por exemplo o que fica no carro para dar fuga ao autor e coautor do crime de homicídio) no crime, por outro, todo esse trabalho acaba por esbarrar em outra teoria que serve de termômetro aos anseios populares da atualidade e se esconde na perspectiva do que conhecemos como teoria da cegueira deliberada, a qual reforça a ideia, quase que sem aparo no direito tupiniquim, da imputação subjetiva.
Em razão dela, a cegueira deliberada, ou melhor, da sua aplicação junto ao direito brasileiro, vários autores indicam que atravessamos um grave momento de instabilidade jurídica, já que seria entendida, por muitos, como um equivalente a teoria do dolo eventual (dolo eventual é aquele onde o agente não quer o resultado, por ele previsto, mas assume o risco de produzi-lo).
Oriunda do direito norte-americano e muito utilizada na atualidade em casos de tráfico de drogas, por exemplo, chegou no Brasil em 2005, no caso do “Assalto ao Banco Central”, para avalizar condenações por crime de lavagem de dinheiro. Passou pelo “Caso Mensalão”, onde os supostos autores tentaram alegar desconhecimento sobre a origem de seus bens e hoje, após ser muito utilizada também nos casos que envolveram a famigerada “Operação Lava Jato”, vem sendo aplicada nas mais diversas condenações por tráfico, contrabando, descaminho entre outros crimes, mas sempre com o escopo de evitar que os “pretensos agentes criminosos” aleguem erro de tipo (artigo 20 do Código Penal), por desconhecimento dos fatos com os quais são relacionados nas atividades criminosas.
Na verdade, é o verdadeiro “pó de pirlim pim pim” do Judiciário no tocante a não precisar aplicar decisões baseadas na certeza do fato, como determina nossa Constituição Federal ao prescrever em seu artigo 5.º, inciso XXXIX, que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.
O grande problema, mais uma vez, é que, por sua origem em países que aplicam a “Common Law” (o que diverge muito do nosso sistema), permite que os tribunais lancem mão de sua aplicação sem qualquer lastro no devido processo legal. Isso, sem dúvidas, causa instabilidade para a defesa que se vê sem balizas para refutar as acusações e, do mesmo modo, desprestigiado todo e qualquer argumento invocado em favor de seu cliente.
Nesse aspecto talvez fica ainda mais claro imaginarmos casos como o de Erenice Guerra, secretaria executiva de Dilma Rousseff, na época à frente da Casa Civil e favorita à sucessão do então presidente, Luiz Inácio Lula da Silva. Dilma, em apertada síntese, disse não ter o domínio do fato e nem poder responder pelo que seus subordinados faziam, vez que era impossível estar com eles 24 horas por dia, esquivando- se de qualquer responsabilidade criminal e permitindo que, no ano de 2010, em pleno burburinho do “Caso Mensalão”, os tribunais fossem mais maleáveis para com o caso.
Recentemente o “Caso Covaxin” e a denúncia de propina para a compra de vacinas, onde o atual Presidente da República Jair Bolsonaro está sendo investigado por crime de prevaricação (artigo 319 do Código Penal – retardar ou eixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa em lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal), é outro exemplo onde poderemos ver aplicada a teoria da cegueira deliberada e a teoria do domínio do fato. Neste caso, em específico, no depoimento à “CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da COVID-19”, o deputado Luís Miranda (DEM/DF) alegou que, ao levar a denúncia sobre a propina a Bolsonaro, o presidente teria dito “Vocês sabem quem é, não é? Se eu mexo nisso aí, você já viu a merda que vai dar, não é?”. Essa pessoa a quem o presidente teria se referido e que seria responsável pelo caso, seria, supostamente, o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros.
No caso em questão, o presidente está sendo investigado por não comunicar a suposta irregularidade para que pudesse ser averiguada logo que tomou conhecimento e estar aguardando a conclusão da CPI acima retratada, para não se incriminar.
Nesse ponto, meu Caro Leitor e, como fazemos questão de deixar claro em todos os nossos artigos de nossa lavra, a aceitação de teorias advindas de países que não estruturam seus crimes na teoria do fato e, portanto, não seguem o devido processo legal (esculpido em nossa Constituição Federal), admitem a não obrigatoriedade de vincular os julgamentos ao estrito cumprimento do que dizem os textos legais (Estado Democrático de Direito) e permitem, ainda, que os magistrados imprimam julgamentos morais (dilemas), punindo de forma política quem e quando lhes interessa, na perspectiva jurídico e levando a punição de inocentes e a absolvição de culpados.
Finalizamos nossa fala advertindo que, quando não temos regras claras e bem definidas, princípios constitucionais a serem interpretados apenas quanto aos limites de suas extensões, estamos à mercê da aplicação de teorias alienígenas capturadas ao sabor do vento, criando verdadeiras “válvulas de escape” e fazendo com que a junção dos temas aqui abordados, a teoria do domínio do fato e a teoria da cegueira deliberada, não sejam aplicados para a garantia da ordem pública e segurança jurídica, mas como forma de entraves à Democracia, transformando todo e qualquer julgamento num palanque político partidário.
*Marcelo Bareato é doutorando em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá/RJ, ocupa a cadeira de n.º 21 na Academia Goiana de Direito, professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal Especial e Execução Penal na PUC/GO, Advogado Criminalista, membro da Comissão Especial de Segurança Pública da OAB Nacional, Conselheiro Nacional da ABRACRIM, Presidente do Conselho de Comunidade na Execução Penal de Goiânia/GO, Presidente da Comissão Especial de Direito Penitenciário e Sistema Prisional da OAB/GO, entre outros (ver currículo lattes http://lattes.cnpq.br/1341521228954735).