O diálogo entre lealdade processual e a concentração da defesa

*Augusto de Paiva Siqueira

A “lealdade processual”, no atual sistema processual civil, se revela como comando implícito e intrínseco à aplicação válida das regras processuais que deflui direta ou indiretamente dos preceitos estabelecidos na Constituição Federal de 1988. O princípio em referência, que desde há muito é objeto de estudo pela doutrina
especializada, ganhou uma tônica diferenciada a partir da codificação estabelecida pela Lei nº 13.105/15, pois já no “Capítulo I”, da “Parte Geral”, do Código de Processo Civil foram inseridos direitos e garantias fundamentais com o propósito expresso de conferir aplicabilidade e efetividade máxima a essas disposições no contexto do processo.

Sobre o tema, diz a doutrina que a “lealdade processual” é um princípio, pois é dotado de abstração e potencial de otimização quando da aplicação do direito ao caso concreto. A sua conceituação fica a cargo de Leonardo Greco (2015, p. 736), para quem a “(…) Lealdade é probidade, honestidade e boa-fé. A probidade e a honestidade são
exigidas das partes durante o curso do processo em relação ao juiz e ao seu adversário, enquanto a boa-fé é uma consequência das primeiras e significa que as partes devem realmente acreditar na justiça e na procedência das suas postulações”.

Quanto ao amparo positivo do princípio da “lealdade processual”, a interpretação teleológica do ordenamento jurídico é que nos dá o caminho para o seu encontro. O seu espírito, por assim dizer, está inserto no conteúdo do “devido processo legal”, garantia fundamental prevista no art. 5º, inciso LIV da CF, que é responsável por restringir e condicionar a intervenção estatal voltada à privação da liberdade e do patrimônio. Também, se articulada a referida garantia fundamental com o disposto no art. 3º, inciso I da CF é possível depreender que o “devido processo legal” só cumpre o objetivo fundamental da República se possibilitar a construção de uma sociedade livre,
justa e solidária, daí se revelando a “lealdade” como a ponte necessária entre a efetividade de uma garantia fundamental de matiz processual com um objetivo republicano.

No âmbito infraconstitucional, também é possível extrair o princípio a partir do que dispõe o art. 5º do CPC, o qual consolida a cláusula-geral de “boa-fé” como um dever de todo aquele que participa, de qualquer forma, do processo. A disposição legal, por certo, incorpora no texto codificado uma das suas facetas, pois transporta ao
processo civil uma verdadeira norma de conduta de caráter objetivo que, se eventualmente desrespeitada, pode sujeitar o transgressor às mais diversas consequências, de que é exemplo a litigância de má-fé (art. 79 do CPC).

Nesse contexto, no qual se enxerga a “lealdade processual” como princípio do direito processual, é propícia a ponderação em torno da sua otimização e compatibilidade com a regra da “concentração da defesa”. Segundo os artigos 336 e 337 do CPC, quando da apresentação da contestação cumpre ao réu alegar toda a matéria de defesa, expondo as razões de fato e de direito com que se contrapõe à pretensão do autor. Essa concentração defensiva, porém, abre margem à possibilidade de as argumentações serem contraditórias entre si à luz do princípio da eventualidade, o que, por sua vez, seria aparentemente ofensivo ao modelo imposto pela lealdade.

Essa reflexão ainda ganha mais importância quando se leva em consideração a principal consequência prática proveniente da concentração da defesa que é, justamente, a eficácia preclusiva da coisa julgada (art. 508 do CPC). Se na ocasião da apresentação da contestação o réu deixar de apresentar qualquer tese quando à época era possível deduzi-la, a oportunidade de alegá-la ficará prejudicada se, ao final, o caso concreto for dirimido por sentença de mérito, pois o encerramento da causa ficará acobertado pelo manto da imutabilidade e definitividade da coisa julgada que torna impossível a rediscussão da matéria, ressalvada a hipótese de ajuizamento da ação rescisória (art. 966 do CPC). A sistemática processual, nesse sentido, parece impor ao réu que assuma o risco de ser contraditório ao tempo da contestação, sob pena de futuramente ter que lidar com um “mal maior”.

Diante desse entrave, a interação entre o “princípio da eventualidade” com o “princípio da lealdade” conduz à necessidade de harmonização, tanto para possibilitar ao réu que não seja prejudicado quando no exercício do direito de defesa, quanto para reprimir eventual abuso no seu exercício. Nesse diálogo entre princípios, o timoneiro do intérprete deve ser necessariamente o objetivo republicano da “solidariedade”, até para permitir que o processo não seja “um fim em si mesmo”, mas antes de tudo um instrumento de pacificação social.

Por esse norte, o exercício da eventualidade na concentração defensiva deve ser limitado pela própria veracidade, pois ele não pode ser visto como uma autorização ao réu para advogar contra as normas de conduta, deduzindo teses que francamente não acredita na sua justiça ou procedência. Nesse viés, Leonardo Greco (2015, p. 736) enfatiza que a “lealdade processual” impõe “(…) que as partes só devem postular aquilo que acreditam ser veraz, ou seja, somente devem fazer alegações em conformidade com a verdade, alegando fatos cuja existência efetivamente acreditem (…)”, pois “A veracidade é um dever das partes. É um erro grave supor que a parte ou
o seu advogado têm o direito de mentir”.

A possibilidade de apresentar teses incompatíveis entre si não é um direito absoluto, o que acaba por exigir do profissional do Direito o bom senso e razoabilidade quando da representação dos interesses do réu. Com razão, Fredie Diddier (2019, p. 745) afirma que “Nem toda ilogicidade é superada pela aplicação da regra da concentração da defesa” e, citando Luís Guilherme Marinoni, exemplifica: “(…) se o réu afirma que a mercadoria entregue possui vícios, ‘é impossível negar a sua entrega, pois o juiz, para verificar a existência de vícios, deve necessariamente admitir a entrega da mercadoria’”. Os argumentos simultâneos de teses como “nada devo” e a “exceção do contrato não cumprido” revelam, pela sua própria natureza, incompatibilidade insuperável pela própria lógica dos fatos até porque o reconhecimento de um necessariamente pressupõe a existência de outro. A coerência, portanto, deve atuar como limitador do argumento eventual.

É legítimo entender, portanto, que o alcance da regra da concentração das defesas é limitado pela própria imperatividade do “princípio da lealdade processual”, pois não é possível admitir um direito irrestrito à eventualidade, sob pena de frustração dos objetivos republicanos e malferimento aos direitos e garantias fundamentais. Por outro lado, a lealdade em si não constitui óbice intransponível à concentração defensiva,
pois a dedução de teses logicamente incompatíveis, mas sintonizadas com as normas de conduta, é perfeitamente conciliável com a eficácia preclusiva da coisa julgada e, em especial, com as premissas do “processo civil leal”.

*Augusto de Paiva Siqueira é pós-graduando em Direito Processual Civil (UERJ). Pós-graduando em Direito Público (UFG). Especialista em Direito do Consumidor pela UFG (2020). Graduado em Direito pela PUC-GO (2018). Venceu em segundo lugar os prêmios nacionais de dissertações do CADE (2017) e de monografias da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ (2017). Atualmente é procurador de Prerrogativas da OAB-GO, aprovado no primeiro concurso público da Seccional (2018). 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DIDIER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito Processual
Civil, Parte Geral e Processo do Conhecimento. Volume I. Ed. JusPodium. 2019.

GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil. Volume I. 5. Ed. Rio de Janeiro: GEN
Forense. 2015.