Sued Araújo Lima*
A advocacia, pilar essencial da administração da justiça, está em ebulição. Novas tecnologias surgem a todo instante, e a Inteligência Artificial (IA) na redação de peças processuais já é uma realidade inegável nos escritórios. Mas, e se essa inovação, sem a devida verificação humana, virar um pesadelo ético e disciplinar?
Imagine a cena: um recurso assinado por um advogado, elaborado com o auxílio de IA, é rejeitado no Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) porque apresentava 43 jurisprudências inexistentes (Processo n. 0001361-79.2021.8.16.0031). O desembargador, ao analisar o teor, identificou o uso da IA e a falha. O que acontece com esse advogado?
Situações como essa podem resultar em um ofício direto ao Tribunal de Ética e Disciplina da OAB, dando início a uma apuração de infração disciplinar. Este caso acende um sinal de alerta crucial: como integrar as tecnologias mais recentes na advocacia sem comprometer nossas responsabilidades éticas fundamentais? Este artigo mergulha fundo nessa questão, oferecendo uma análise técnica e, ao mesmo tempo, empática com a realidade da sua prática profissional.
Infração disciplinar: onde a IA encontra o Código de Ética
Você sabia que o uso de jurisprudência inexistente, mesmo que “sem querer”, pode se enquadrar como infração disciplinar? O Art. 34, inciso XIV do Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei n. 8.906/94) é claro:
“Deturpar o teor de dispositivo de lei, de citação doutrinária ou de julgado, bem como de depoimentos, documentos e alegações da parte contrária, para confundir o adversário ou iludir o juiz da causa.”
A grande questão é: a inserção involuntária de jurisprudência inexistente, gerada por IA, pode ser equiparada à deturpação dolosa? Este é um dos pontos mais sensíveis da discussão. É preciso distinguir o erro técnico do comportamento doloso, especialmente em uma era onde as ferramentas de IA produzem conteúdos com uma aparente verossimilhança quase perfeita.
Em casos de representação no Tribunal de Ética, a defesa técnica deve ser enfática na ausência de dolo, especialmente quando se consegue comprovar que não houve intenção de ludibriar o juízo ou manipular o resultado do processo. A boa-fé é sua maior aliada aqui.
Sanção cabível: uma advertência necessária
Se a infração for confirmada, qual seria a pena? Conforme o Art. 36, I, do EOAB, a sanção para a deturpação de julgado (prevista no Art. 34, XIV) é a censura.
A depender do histórico profissional, do contexto da atuação e da inexistência de má-fé, é possível argumentar que falhas técnicas pontuais não justificam uma reprimenda mais severa. No entanto, fica o alerta: a reincidência pode levar à suspensão (Art. 37, II), mesmo que os casos sejam considerados descuidos isolados. A vigilância é constante.
Responsabilidade técnica: sua caneta, sua culpa
O Art. 32 do EOAB impõe ao advogado a responsabilidade por atos praticados com dolo ou culpa no exercício profissional. Nesses casos, a defesa precisa demonstrar:
- Conduta profissional ilibada: Seu histórico pesa muito.
- Erro de boa-fé: Houve disposição para corrigir e colaborar com o juízo.
É fundamental que a aplicação de sanções disciplinares seja proporcional e considere o elemento subjetivo da conduta. Punir automaticamente, sem analisar o contexto, compromete o devido processo legal e ignora os desafios técnicos e operacionais que a advocacia enfrenta ao se adaptar a essas novas tecnologias.
Conclusão: integrar com ética, defender com razão
A Inteligência Artificial na advocacia é uma realidade irreversível. O desafio, agora, é integrá-la com ética, técnica e responsabilidade, sem comprometer o direito à ampla defesa do advogado em um processo disciplinar.
Casos como o do TJPR não devem servir para demonizar a inovação. Pelo contrário, eles devem fomentar o debate sobre limites, deveres de verificação e critérios de justa responsabilização. Ao mesmo tempo, os Tribunais de Ética têm o dever de agir com ponderação, analisando o caso concreto, o histórico do profissional e os elementos subjetivos da conduta.
Mais do que nunca, advogados precisam estar atentos. Mas, acima de tudo, devem poder contar com a compreensão institucional sobre os desafios de uma profissão em constante transformação tecnológica.
*Sued Araújo Lima é sócio do escritório Merola & Ribas Advogados. Especialista em Direito Público pelo Instituto Goiano de Direito. Foi Assessor da Presidência do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/GO.