Judicialização da Saúde: um processo necessário ou situacionista?

*Paloma Oliveira

Quando se fala da judicialização da saúde a primeira coisa que vem a nossa cabeça é que esse fenômeno foi desencadeado pela necessidade de frear uma série de ilegalidades que ocorriam no âmbito das relações médico-paciente. Mas será que foi realmente esse o motivo do exorbitante aumento de demandas no Judiciário?

No dia 18 de março o Conselho Nacional de Justiça, o CNJ, divulgou uma pesquisa que aponta um crescimento de 130% no número de demandas de primeira instância relativas ao direito da saúde entre 2008 e 2017. Um indicativo de extrema relevância que merece ser observado é uma notória tendência dos magistrados em julgar as demandas em favor dos pacientes. No Estado de São Paulo, por exemplo, também segundo a pesquisa do CNJ, chega a 85% o percentual de procedência dessas ações.

Dessa forma, o que fica claro é que estamos diante de um fenômeno conhecido como má judicialização da saúde. Explico. Trata-se de um processo que vem ganhando força ao longo dos anos entre os pacientes em razão da falta de padronização das decisões judiciais envolvendo direito médico. Ou seja, temos sentenças proferidas sem qualquer embasamento técnico, as quais, em sua maioria, levam em consideração apenas aspectos sociais e não se atentam a questões básicas ligadas principalmente a responsabilidade do médico que, apesar de ser indiscutivelmente subjetiva, na prática vem sendo simplificada pelo Judiciário.

Em 2017 foi lançado um projeto chamado e-NatJus, fruto de uma parceria entre o CNJ e o Ministério da Saúde. O objetivo maior desse projeto era fornecer ao judiciário subsídios na área de saúde, viabilizando, em última análise, soluções jurisdicionais mais rápidas e homogêneas.  Sendo assim, o magistrado ao julgar uma determinada demanda poderia recorrer a um banco de dados confiável, com evidências científicas, o qual desencadearia decisões com o devido respaldo técnico e efetivamente imparciais.

Ocorre, entretanto, que segundo levantamento recente feito pela faculdade Insper, menos de 20% dos Acórdãos citam pelo menos um dos pareceres técnicos disponíveis e oportunamente reunidos com esse fim.

A própria Conitec – Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias – criada em 2012 cm objetivo de assessorar o Ministério da Saúde na decisão de incorporação de novas tecnologias no SUS, fornece dados de suma importância ao Judiciário, porém, o que vemos na prática são decisões que por não realizarem consultas prévias acabam por fomentar uma judicialização desnecessária.

E por mais que o CNJ tente soluções alternativas, como por exemplo o estímulo a utilização de métodos alternativos de soluções de conflitos como arbitragem e mediação, sem a difusão de uma conscientização da relevância na utilização dessa base de dados, continuaremos vendo uma clara intervenção do Judiciário na administração do orçamento das empresas de saúde. Inclusive, na abertura da III Jornada de Direito da Saúde, que aconteceu no último dia 18, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, se manifestou repudiando especificamente essa situação.

A referida jornada, conforme bem pontuado pelo ministro, que é também presidente do CNJ, é muito importante e caracteriza uma preocupação de seus organizadores com o rumo da judicialização da saúde no Brasil. Sendo assim, nela ocorre a aprovação de Enunciados, que apesar de não possuírem caráter normativo, refletem um consenso entre os operadores de Direito e os gestores do sistema de saúde.

Na última jornada, ocorrida em 2015, foram aprovados 68 Enunciados, estes divididos entre Biodireito, Saúde Pública e Saúde Suplementar. É possível perceber uma evidente preocupação em esclarecer conceitos, delimitar deveres e sugerir procedimentos simplificados, tudo direcionado a um comportamento preventivo e bastante salutar.

De forma alguma pretende-se com todas essas movimentações e parcerias o afastamento de questões ligados ao direito de saúde do Judiciário. Isso porque além de tratar-se de direito inafastável e constitucionalmente assegurado, o sistema de saúde e os magistrados formam uma única força-tarefa focada na prevenção de conflitos judiciais: o intuito não é a redução meramente sistemática dos números, mas sim a criação de padrões éticos e coerentes com o exercício da medicina.

Mais do que prevenir ações judiciais é importante alinhar entendimentos. O magistrado possui a sua livre convicção. Sempre possuirá. Contudo precisamos reconhecer que a utilização de dados com o devido respaldo técnico e dotados de plena confiabilidade são ferramentas de extrema valia para que o Judiciário consiga garantir direitos com efetiva equidade. Estando a classe médica e os profissionais do direito alinhados, juntamente com o esclarecimento da população a redução na judicialização será um processo natural, sem vilões ou mocinhos, apenas uma reestruturação na base da controvérsia para que ações judiciais simplesmente se tornem, aos poucos, desnecessárias.

*Paloma Oliveira é advogada e sócia da Jacó Coelho Advogados