Gestão do risco jurídico na medicina tutela a autonomia do paciente e minimiza judicializações

giovanna-tradO número de processos judiciais atinentes à saúde no Superior Tribunal de Justiça teve um crescimento alarmante entre os anos de 2000 e 2015, atingindo o percentual de 1600%. Nos tribunais estaduais a média de crescimento foi de 350%. O levantamento foi pela Anadem – Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética- junto aos Tribunais de Justiça e ao STJ, entre 2000 e 2015.

O que mais assusta é que 7% dos médicos brasileiros responde algum tipo de processo decorrente do exercício da atividade, o que comprova a máxima de que a medicina se enquadra no rol de profissões que oferece maior perigo jurídico.

Vivenciamos uma verdadeira epidemia nacional (aliás uma pandemia, pois o mal do “erro médico” já se faz presente em diversas regiões do planeta) difícil de debela-la, mas quem se protege, indiscutivelmente, corre menores riscos de ser atingido pela doença, cumpre dizer, de sofrer uma condenação e os impactos dela resultantes.

Aplicar a técnica adequada, empregá-la corretamente e diligentemente -apesar de fundamental à boa prática da medicina- não é suficiente para poupar o médico da temida condenação judicial e/ou ética.

Assim, todos os atores que, de qualquer forma, possuem envolvimento com esse tipo de prestação de serviço necessitam se precaver, seja os médicos enquanto profissionais liberais ou as empresas que operam com saúde (as de pequeno, médio e longo porte), especialmente nesta era em que as relações são tratadas como de consumo. Neste encontro, o paciente tem voz e preferência.

Então, necessário que as ameaças jurídicas que contornam esses ambientes desfavoráveis sejam diagnosticadas, medicadas e controladas, antes que a enfermidade deixe sequelas, até mesmo irreparáveis.

Em palavras outras, antes que a reputação e o capital financeiro do médico e/ou da Instituição da Saúde sejam penalizados, indispensável que os ajustes jurídicos sejam executados.

Trata-se de uma prática que começa com o mapeamento dos riscos da empresa, onde um profissional da advocacia (preferencialmente com experiência em Direito Médico) analisará possíveis falhas e irregularidades facilitadoras de demandas e desfechos condenatórios.

Nesta investigação, são analisadas todas as documentações que o magistrado valoriza no momento de julgar demandas desta ordem, como exemplo podemos citar o Prontuário do Paciente, Termos de Consentimento Informado, Contrato de Prestação de Serviços, dentre outros. Além disso, o setor jurídico sugerirá (se necessário) a implementação de novas documentações e protocolos legais. De mais a mais, o advogado faz um trabalho de imersão junto aos médicos, paramédicos e colaboradores no sentido de detectar se estão se comportando da forma alinhada ao que determina o Código de Ética Médica e as leis do país.

A par disso, mesmo que a auditoria aponte que a empresa esteja afinada aos preceitos legais, não se pode perder de vista o imperativo de supervisionar o seu padrão de qualidade, e mais que isso, apontar melhorias. Para esta manutenção, indicamos um diagnóstico jurídico semestral associado a um trabalho consistente em treinar a equipe de profissionais da saúde.

Manter-se atualizado tecnicamente e dentro das normas legais e éticas é uma necessidade, é uma obrigação, é estar em compliance (este termo advém do verbo to comply, que nada mais é que atuar dentro das leis, regras e instruções internas).  É uma chance de revisar processos,  lapidar os serviços ofertados e conferir satisfação ao paciente.

Se o levantamento constatar vulnerabilidade nos documentos e no  próprio ambiente de trabalho (passíveis de riscos legais), recomenda-se que haja continuidade do suporte jurídico até que os vícios sejam sanados por completo, até que sejam produzidos documentos adequados à medicina entendida como relação de consumo, enfim, para que todos possam trabalhar em um ambiente seguro.

Em serviços de maior rotatividade e dimensão, os riscos são maiores, exigindo revisões de documentos e adoção de novos instrumentos de prevenção em um ritmo quase que constante.  As  relações conflituosas tendem a ser muito frequentes, por isso reforçamos a importância de a organização ter ao seu dispor uma consultoria jurídica de plantão, para sanar as dúvidas, orientar, elaborar pareceres, redigir documentos e normas internas, participar de reuniões, comissões de ética e sindicâncias, conduzir qualquer faísca de conflito desde o seu nascimento (neste momento é crucial a figura do advogado, que entra como mediador, conduzindo o caso de tal modo a encerrar possíveis desavenças, antes mesmo da instauração do processo), e atuar nos processos já iniciados, sempre apontando a direção correta e a estratégica jurídica que o caso requer.

Várias condenações ocorrem porque o médico e/ou Instituição de Saúde não praticam o gerenciamento do risco jurídico. Alguns deixam a sindicância no CRM  à deriva, resultando em abertura de processo ético. Outros exemplos: Muitas vezes não possuem a prova documental apropriada para favorecimento de suas defesas (tais como Termo de Desistência do Tratamento, Notificação de Renúncia ao atendimento, Orientações de alta, TCLE, e outros) ou quando os têm, podem ser anulados pela Justiça por não atenderem aos requisitos legais. O problema se instaura também porque vários profissionais da saúde desconhecem as regras impostas pelo Ordenamento legal, já que as faculdades de medicina não educam o médico para lidar com esta realidade.

Adotar tais cuidados pode parecer irrelevante, mas não é. Faz notória diferença no preparo da tese de defesa nos processos cíveis, criminais, ético-profissionais, inquéritos e sindicâncias. Veja-se um exemplo em que médico e hospital foram condenados porque não conseguiram provar à obtenção do Consentimento Informado do paciente. Para tentar comprovar o cumprimento do dever informacional, apresentaram nas suas defesas aqueles formulários padronizados, todavia, não foi admitido pelo Tribunal, que desconsiderou o documento, por ser vago e impreciso, não suprindo, portanto, a exigência do efetivo consentimento informado. (TJ/DF, apelação nº 2006 03 1 023316-2 APC, 6ª Turma Cível).

Para finalizar, cumpre esclarecer que a aplicação de rotinas legais e éticas não tem o objetivo de propiciar um clima de rivalidade ou  de viés unicamente defensivo na relação médico-paciente, pelo contrário, são medidas nobres e fundamentais, que demonstram fidelidade e respeito à autonomia e demais direitos fundamentais do paciente e, como resultado, temos pacientes satisfeitos, hospitais e médicos seguros e transmissores de segurança, bem como a redução dos índices de judicialização.

*Giovanna Trad é advogada, membro do Comitê Executivo Estadual do Fórum da Saúde do Conselho Nacional de Justiça e membro da World Association for Medical Law.