Fraudes em cotas de concursos públicos. Quais as consequências?

*Brunna Frota Silva

Recentemente, tornou-se notícia nacional o caso de uma policial federal que está sendo alvo de investigação por supostamente ter cometido fraude ao se beneficiar de cotas raciais no concurso em que foi aprovada. A então servidora pediu sua exoneração do cargo, mas o procedimento investigatório segue em curso.

A história chamou atenção depois que começaram a veicular na internet fotos da investigada em uma das etapas do certame e aquelas postadas por ela mesma em sua conta no Instagram, pelo qual sua cor de pele está visivelmente mais clara. Em nota, seus advogados relataram que algumas imagens nas redes sociais possuem filtros que estariam mascarando a real aparência da cliente.

Não se pode esquecer também o caso de Lucas Soares Fontes, aprovado utilizando cotas para negros no concurso do INSS realizado em 2016. O rapaz que é branco de olhos claros, em fotos apresentadas durante o certame, estava com a pele e olhos escuros. O caso foi amplamente divulgado pela imprensa nacional e, à época, o investigado afirmou que ficou daquela cor “por conta de sol”.

As cotas raciais em concursos públicos sempre foram alvo de polêmicas, desde sua implementação pela Lei Federal nº 12.990, de 02 de junho de 2014. De acordo com o texto legal ficam reservadas aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.

Percebe-se que tal vinculação é referente aos concursos realizados pelo Executivo Federal, de modo que os demais entes federativos, assim como os demais Poderes são livres para criar suas próprias regulamentações. Neste cenário, a título de exemplo, destaca-se a Lei nº 9.791, de 08 de abril de 2016 que trata das cotas raciais no Município de Goiânia/GO.

A Defensoria Pública de Goiás também adota cotas étnico-raciais para concursos públicos, previsão instituída pela Resolução nº 53/2018 que tem prazo de vigência de dez anos, podendo ser prorrogada. Do mesmo modo, no que tange aos certames realizados pelo Poder Judiciário também existe a previsão de cotas raciais, em virtude da Resolução nº 203/2015 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ.

Neste ínterim, é de se ressaltar que a Lei Federal nº 12.990/2014 traz uma abordagem geral e objetiva do tema, seu texto, inclusive, é bem curto com apenas seis artigos. Sabendo disso, percebe-se que o único critério utilizado pelo ordenamento para fins de aplicação das cotas raciais é justamente a autodeclaração feita pelo próprio candidato.

E, de fato, na época da publicação da lei, a autodeclaração era suficiente para o ingresso dos aprovados. A propósito, esse procedimento era comumente praticado pelas Universidades Federais. Assim, conforme art. 2º, §único, em caso de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.

Com o passar dos anos e, a partir da observância dos efeitos práticos da norma determinou-se que a autodeclaração poderia ser acompanhada de análises complementares. Assim, a declaração feita pelo próprio candidato passa a ter uma presunção relativa. Para tanto, em âmbito federal foi editada a Portaria Normativa nº 4, de 6 de abril de 2018, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão que disciplinou o procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração dos candidatos negros.

Trata-se, pois, de uma avaliação por terceiro, ou seja, é formada uma comissão especialmente para este fim, que analisará tão somente os fenótipos dos candidatos (pele, cabelo, olhos, entre outros), de modo que não serão consideradas documentações porventura apresentadas pelos inscritos, tais como, certidão de nascimento, fotos dos pais, avós ou similares.

É dizer, a ascendência do indivíduo não será parâmetro, mas sim, a análise de características físicas que possam sujeitá-los às consequências da histórica e infeliz discriminação racial em nossa sociedade, em virtude da cor da pele.

Aliás, oportuno mencionar que o STF já declarou a constitucionalidade tanto da Lei nº 12.990/2014 como do processo de heteroidentificação dos candidatos. Nesse sentido, destacou que “é legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e ampla defesa.” (Ação Declaratória de Constitucionalidade – ADC nº 40, DF, 08/06/2017).

Veja que a heteroidentificação é um procedimento extremamente subjetivo e, por essa razão, os editais preveem que os componentes das comissões sejam pessoas com experiência no ativismo negro e que tenham considerável conhecimento no assunto, consubstanciado em cursos e estudos.

E, afinal, o que ocorre caso o candidato que se autodeclarou como negro não seja aprovado na etapa de heteroidentificação?
A resposta é: depende do edital.

De início, oportuno abrir um parêntese que o fato de ter sido reprovado pela Comissão de verificação, não significa automaticamente uma fraude cometida pelo candidato que se autodeclarou negro, vez o caráter subjetivo da avaliação, tal como mencionado acima, e pelo fato de a autodeclaração ter uma presunção relativa.

Mas independente disso, é de extrema importância que o candidato que pretenda utilizar as cotas raciais tenha em mente todos os pontos trazidos pelo edital. Isso porque alguns certames estabelecem que em caso de reprovação pela Comissão de heteroidentificação o candidato será imediatamente excluído do concurso. Aliás, já houve caso de candidato aprovado em 1º lugar geral no concurso, que ao ser submetido à heteroidentificação foi reprovado e, com isso, eliminado.

Exemplo disso na prática foi o Edital para provimento de vagas para o cargo de escrivão da PC/DF publicado em 2019 que previu eliminação do candidato “que não for considerado negro pela comissão de heteroidentificação, ainda que tenha obtido nota suficiente para aprovação na ampla concorrência e independente de alegação de boa-fé”.

Por outro lado, em virtude das especificidades da avaliação, atualmente é mais comum que os editais estabeleçam a previsão de que aquele que foi reprovado na análise de fenótipo permaneça no certame, mas disputando entre as vagas de ampla concorrência. Exemplo disso foi visto no recente Edital para o MP/GO publicado em 2019 e também é trazido como orientação para os Editais porventura publicados pela Defensoria Pública de Goiás.

No entanto, tendo como parâmetro os exemplos reais trazidos no início deste artigo, é de se ver que muitos candidatos são aprovados e nomeados no serviço público e, anos depois, especialmente, mediante denúncias aponta-se suposta fraude na obtenção das cotas.

Em tais casos, no âmbito interno do órgão instaura-se procedimento administrativo garantido o contraditório e ampla defesa, ao passo que, ao final, caso comprovada a fraude, a nomeação daquele servidor é anulada. Ou seja, não se trata de uma demissão, na verdade, retorna-se ao início, tornando sem efeito sua nomeação. E foi justamente o que ocorreu com o servidor do INSS outrora mencionado.

Ademais, na seara penal, não há uma tipificação específica para essas situações, mas é possível seu enquadramento no crime de falsidade ideológica, artigo 299 do Código Penal, que prevê pena de um a cinco anos de reclusão pelo fato de o indivíduo ter adulterado informação sobre algo juridicamente relevante relativo a sua pessoa, com fim de obter uma vantagem.
Avença-se ainda a possibilidade de o Poder Público ajuizar ação judicial para ressarcimento dos valores despendidos pelo erário, em relação aos vencimentos pagos aos servidores que fraudaram seus documentos. Neste ponto, ressalta-se que não se cuida de matéria pacífica nos Tribunais, todavia, o que se nota é a busca de elemento subjetivo (má-fé) para dirimir a questão da reposição de valores ao erário.

Ante tais considerações, deve-se ressaltar que a discussão em torno da melhor maneira de aplicação das cotas raciais sempre estará em voga, alguns defendem a cota única que aufira a cor e a renda, outros entendem que o atual modelo é suficiente com algumas adaptações nas avaliações.

Discussões à parte, não se pode negar que diversos fatores eminentemente históricos impedem os negros de competir em pé de igualdade nos concursos públicos, situação essa que justifica a política das ações afirmativas. Porém, o que deve ser observado é justamente as maneiras com que tais programas são implementados e que atinjam e beneficiem de fato as pessoas certas, a fim de evitar fraudes e a perpetuação da desigualdade.

*Brunna Frota Silva é advogada; especialista em Direito Público; membro da Comissão Especial de Direito Administrativo da OAB/GO; assessora jurídica no Departamento Estadual de Trânsito do Estado de Goiás – Detran/GO.