André Ricardo de Almeida*
A título de isagoge preliminar, tem-se que a Constituição Republicana de 1988 prevê em seu Título V um importante tema a ser debatido, qual seja, a Defesa do Estado e das Instituições Democráticas, em caso de crise institucional, que a meu ver se aplica à crise decorrente da questão previdenciária ante à fraude junto ao INSS – Instituto Nacional de Seguridade Social.
Com a previsão supracitada, o constituinte respeitou a ideia de que, como adotamos um Estado Democrático de Direito, a Constituição deve estipular não somente normas apropriadas para situações de normalidade, mas também para situações de crise.
Constitui-se regra comum a previsão pelos sistemas constitucionais alienígenas de situações nas quais se verifica o estremecimento da base do Estado, da Constituição e da ordem social.
Partindo-se desse pressuposto, houve a criação de um Sistema Constitucional de Crises, adotando-se, a histórica definição de Aricê Amaral (in SANTOS, Aricê Moacyr Amaral. O Estado de Emergência. 1 ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1981), ao aduzir que se trata de um “conjunto ordenado de normas constitucionais, que, informadas pelos princípios da necessidade e da temporariedade, têm por objeto as situações de crises e por finalidade a mantença ou o restabelecimento da normalidade constitucional”.
O objetivo precípuo desse artigo é ir além de uma mera análise superficial das regras constitucionais acerca do Estado de Emergência ou Estado da Crise. Busca-se também verificar quais são os instrumentos de controle de poder disponíveis para momentos de crise, e definir os direitos e garantias fundamentais que poderão ser restringidos.
A importância do tema advém do fato de ser necessário um maior foco no estudo de situações nos quais o Estado e sua ordem jurídica são objeto de instabilidades, a fim de que seja melhor delimitado quais serão os meios permitidos pela Constituição, já que todos os países estão suscetíveis (em graus diferentes) a momentos de rompimentos com a ordem posta.
O entendimento do que vem a ser Sistema Constitucional de Crises só pode advir da análise de cada um de seus elementos constitutivos. No que se refere ao significado da expressão sistema constitucional, traz-se o ensinamento do mestre Aricê Amaral (in SANTOS, Aricê Moacyr Amaral. O Estado de Emergência. 1 ed. São Paulo, 1981, Ibid, p.32), preconizando que o mesmo vem a ser “o conjunto ordenado e sistemático de normas contidas na Constituição, inscritas pelo constituinte segundo princípios coerentes e harmônicos, que têm por objeto a organização do Estado e os direitos fundamentais do ser humano”.
O termo crise possui uma ampla gama de significados, mas, tendo-se em vista a relação dele com a temática sob questão, pode-se falar de situações na quais há o rompimento da normalidade, submetendo a risco o Estado e a ordem social.
Por ora, utilizando-se da doutrina de escola de Dirley da Cunha Jr (in CUNHA JÚNIOR, Dirley da Curso de Direito Constitucional.6 ed. Salvador: Jus Podivm, 2008, p. 1202), pode-se afirmar que o Sistema Constitucional de Crises é um sistema jurídico que tem por meta ordenar e delimitar as medidas que serão estritamente necessárias para o debelamento de crises de grande monta nas esferas política e institucional.
Ressalte-se, por oportuno, que é grande a variedade de expressões utilizadas pela doutrina para a denominação desse regime, podendo ser citadas, dentre outras, as seguintes: “Estado Democrático de Direito Excepcional”, “Ordem Legal Excepcional”, “Estado de Tumulto”, “Medidas de Exceção”, “Direito de Síncope Constitucional”, “Defesa da Segurança e Ordem Públicas”, “Estado de Exceção Constitucional” e “Direito de Salvaguarda do Estado”.
Devemos, assim, melhor estabelecer as regras pelas quais o sistema constitucional de crises deve se pautar, tanto sob a ótica interna, quanto sob o olhar externo, e precipuamente através dos princípios incindíveis nesse procedimento
Inicia-se com o princípio da legalidade, que, de acordo com a lição do preclaro mestre Alfredo Canellas, significa que “o Estado Nacional, para decretar o Estado de Salvaguarda, deve obedecer ao previsto no seu próprio direito interno, nas leis, como também ao estabelecido nos tratados e convenções internacionais” (CANELLAS, Alfredo. Direito de crise na constituição de 1988. O emprego do estado de defesa e do estado de sítio. Disponível em: <http://www.advogado.adv.br/artigos/2003/alfredocanellas/estadodesalvaguarda.htm
Arrematando, traz-se a lume o ensinamento do insigne e renomado constitucionalista e Ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso ao afirmar que: “Trata-se de um valioso instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do interesse público, por permitir o controle da discricionariedade dos atos do Poder Público e por funcionar como a medida com que uma norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim constitucional nela embutido ou decorrente do sistema”. (in BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3 ed., São Paulo: Saraiva, 2011, p. 328-329).
Ainda temos o princípio da ameaça excepcional significando que a situação de crise deve ser de extrema gravidade (art. 4º, 1, Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e art. 27, 1, Pacto de San José da Costa Rica). A análise da ameaça ou perigo tem de ser feita de forma objetiva, ou seja, não há de ficar ao alvedrio da autoridade competente.
Há de ser dito que as medidas adotadas no estado de emergência não poderão de forma alguma estar fundadas única e exclusivamente em motivos de raça, cor, sexo, idioma, religião ou origem social. É o que se denomina princípio da não discriminação, previsto nos arts. 4º, 1 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e 27, 1, do Pacto de San José da Costa Rica.
Esses direitos não podem de nenhuma maneira ser suspensos ainda que de forma ínfima, uma vez que, tomando-se por base a lição de Daniel Zovattio, tais direitos estabelecem uma “contenção insuperável para qualquer razão de Estado” (ZOVATTO, Daniel. Los Estados de Excepción y los Derechos Humanos em América Latina. Caracas/San José: Editorial Jurídica Venezolana, 1990, p. 99), ou seja, uma área na qual há de prevalecer o valor da pessoa humana diante do poder público.
O insigne mestre constitucionalista e Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes preconiza que, “no sistema constitucional de crise, jamais haverá, em concreto, a possibilidade de supressão de todos os direitos e garantias individuais, sob pena de total arbítrio e anarquia” (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19 ed., São Paulo: Atlas, 2006, p.716).
Por fim, há de observar que as medidas adotadas pelo Estado Parte durante a situação de crise não poderão ser incompatíveis com as demais obrigações impostas pelo Direito Internacional, conforme o previsto no art. 4º, 1, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e art. 27, 1, da Convenção Americana de Direitos Humanos.
Suplantada a análise principiológica, conclui-se que a adoção de medidas de emergência não significa uma suspensão do Estado de Direito, não autorizando os governantes a se afastarem da legalidade.
Aplicando-se os ensinamentos à realidade pátria, deve sempre se ter em mente que o governante e as autoridades executoras das medidas, além do respeito a nossa Carta Magna de 1988, terão de ter como norte as importantes previsões do art. 4º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e do art. 27 da Convenção Americana de Direitos Humanos.
Após a referida análise das regras e princípios a serem observados numa ótica internacionalista, há de se fazer um estudo pormenorizado das medidas que poderão ser adotadas no nosso Sistema Constitucional de Crises, em especial a referendada pela fraude no INSS, a qual é o foco deste artigo.
Em uma triste jornada social de péssimas notícias e indesejados acontecimentos, a numerosa classe trabalhadora se vê refém ainda da ineficiência do INSS em um momento de extremas necessidades e de um colapso do sistema previdenciário em detrimento da fraude insculpida no momento atual.
Neste ambiente, a sofrida classe trabalhadora, seus dependentes e os beneficiários do sistema previdenciário nacional convivem com uma promovida pelo INSS, importante autarquia federal responsável pela gestão do pacote de prestações e que, em linhas gerais e via de regra, visa o bem-estar de todos.
Deveria e caberia ao INSS uma atuação efetiva, eficaz e célere no momento presente de grandiosa crise institucional financeira, com sequelas econômicas, políticas, jurídicas, etc, esperando que sua atividade-fim a esta altura estivesse a todo vapor, concretizando os desejos realizados na legislação federal de sua criação, além da própria essência de seu pacote protetivo encontrado no artigo 18 da Lei Federal 8.213/91.
Em sentido oposto, o que se vê é o retrocesso, uma atuação distante, omissa e ineficiente em diversos sentidos, com filas e filas, agências fechadas, inoperância do sistema, quadro deficitário de servidores, rigidez normativa e outros aspectos que bem colocam essa autarquia distante do povo ou, por quê não dizer, representante de obstáculos de seus sujeitos envolvidos em momentos de grandes adversidades e volumosas necessidades.
Como se não bastasse, a sociedade ainda se viu envolvida com as recentes novidades da denominada “Reforma da Previdência”, um conjunto de confusas e restritivas novas regras que impactaram sobremaneira tudo e todos, relativizando direitos, extinguindo alguns, prolongando outros, enfim, um novo sistema perverso e cruel notadamente aos mais necessitados, aliás, habituados aos baixos salários.
Essas as promessas, de uma fundante política estatal que deveria englobar, abrigar, assegurar e efetivamente proteger, e não refletir um divórcio com os sonhos tracejados, alimentados pelo apagão da autarquia e as desajustadas regras reformadores que até agora não demonstrou a que veio.
Assim sendo, além de uma análise dos pressupostos jurídico-constitucionais, o Poder Legislativo tem o aval para examinar o mérito das medidas do estado de defesa de e do estado de sítio, podendo estipular o que é conveniente ou oportuno de ser decretado.
Além disso, há o controle judicial, que deve ser sempre garantido, como forma de impedir que ilegalidades sejam cometidas, não havendo nisso nenhuma mácula à separação de poderes, uma vez que tal procedimento é corolário da teoria dos freios e contrapesos.
Derradeiramente, há de se ressaltar a importância desse tema – apesar de muitas vezes não ter seu devido valor reconhecido -, porquanto é essencial que saibamos de antemão quais as regras constitucionais que terão de ser observadas numa situação de crise, o que permitirá uma melhor análise crítica da população acerca das medidas tomadas, sempre se tendo em mente que o Estado de Salvaguarda visa o fortalecimento da democracia e do próprio Estado, pautando-se sempre por dois princípios de fundamental relevância: temporariedade e proporcionalidade.
Em conclusão, a falência do Estado do Bem Estar Social deu início ao uma nova ordem social. O apogeu do Estado mínimo e a ineficiência do Estado em prover o mínimo necessário para garantir os direitos sociais ocasionaram uma paralisação do primeiro setor, que é o próprio Estado.
Medidas ou reformas orçamentárias que não violem os direitos sociais nunca foram objeto do poder legislativo o que se criou atualmente foi a inversão dos pilares de sustentação da previdência, pois diante do quadro apresentado, ao invés do Estado realizar aportes de capital para os déficits da previdência, como garante o Princípio da Tríplice Forma de Custeio como é a previdência que vem sustentado o Estado em momentos de crise.
Todavia, pela própria essência da democracia, o consenso em relação à reforma da Previdência, bem como as medidas a serem tomadas ou já tomada para coibir que situações como essa que nos afligem, não será atingido de maneira simples, sem a necessária politização do tema, se fazendo necessários debates e audiências públicas, bem como uma ampla discussão nas casas do Congresso Nacional, pois desigualdades existem (e dificilmente deixarão de existir), e essas são as precursoras dos conflitos sociais.
Toda e qualquer produção legislativa é passível de gerar desigualdades e discriminações, e em relação à reforma da Previdência e a Investigação acerca da fraude no INSS não será diferente, mas isso não a torna inconstitucional, mas do contrário, afirma o compromisso superior da isonomia, de tratar desigualmente os desiguais, igualando os sistemas previdenciários, no quanto possível, e garantido que os fatores de discriminação adotados sejam justificáveis em face da atual constituição – fatores de discriminação proporcionais e razoáveis.
Assim, evidencia-se que o grande desafio para o Brasil, após o reconhecimento do real diagnóstico da crise real de Previdência, se encontra em conjugar a premência da reforma – garantindo a saúde financeira da previdência – com a garantia dos direitos sociais constitucionalmente garantidos, o que se pode fazer com alterações que garantam os direitos adquiridos, protejam ao máximo expectativas de direito, ostentem a primazia da igualdade material, atacando mais fortemente aqueles que possuem maiores condições financeiras.
Além do mais que nessa investigação possamos ter a transparência necessária para que aqueles que foram responsáveis por tal situação, sejam devidamente condenados, com a rigidez que a lei estabelece, obedecendo, claro, os princípios constitucionais que são a égide do Estado Democrático de Direito.
É esperar para ver!!
*André Ricardo de Almeida é advogado militante, pós graduado em processo civil e processo do trabalho, mestre em Direito Constitucional pela Fundação Internacional Ibero Americana – FUNIBER e Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade Nacional de Mar del Plata na Argentina.