Extinção da dívida nos contratos com cláusula de alienação fiduciária de imóvel e a vedação ao enriquecimento sem causa

*Luiz Antônio Lorena de Souza Filho

Como se sabe, o art. 26 da Lei 9.514/97, que institui a alienação fiduciária de coisa imóvel, dispõe que vencida e não paga, no todo ou em parte, a dívida e constituído em mora o devedor fiduciante, consolidar-se-á, nos termos deste artigo, a propriedade do imóvel em nome do credor fiduciário.

Nesse contexto, inicia-se os procedimentos para realização dos dois leilões extrajudiciais para alienação do imóvel, conforme preceitua o art. 27 da referida lei, a fim de satisfazer o crédito do credor fiduciário e extinguir o contrato.

Feito essa brevíssima introdução acerca do tema, passa-se ao propósito desse estudo, que é analisar a figura jurídica do enriquecimento sem causa a partir da extinção dos contratos de alienação fiduciária de imóvel em garantia nos moldes do art. 27, § 5º da Lei 9.514/97, especificamente, nos casos em que não houver no segundo leilão licitante ou lance igual ou superior ao valor da dívida.

Uma vez que o art. 27, § 5º da Lei 9.514/97 estabelece que não alcançada quantia suficiente para satisfação do crédito em nenhum dos dois leilões, considera-se extinta a dívida com a exoneração do devedor fiduciante da responsabilidade pelo eventual saldo remanescente, e com a exoneração do credor fiduciário da responsabilidade de restituir importância paga ao devedor fiduciante.

A propósito, segue a transcrição do art. 27 da Lei 9.514/97, com destaques para os §§ 1º, 2º e 4º, todos eles interligados ao § 5º, senão, vejamos:

Art. 27. Uma vez consolidada a propriedade em seu nome, o fiduciário, no prazo de trinta dias, contados da data do registro de que trato o § 7º do artigo anterior, promoverá público leilão para a alienação do imóvel.

  • Se no primeiro leilão público o maior lance oferecido for inferior ao valor do imóvel, estipulado na forma do inciso VI e do parágrafo único do art. 24 desta Lei, será realizado o segundo leilão nos quinze dias seguintes.
  • No segundo leilão, será aceito o maior lance oferecido, desde que igual ou superior ao valor da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais.[…]
  • Nos cinco dias que se seguirem à venda do imóvel no leilão, o credor entregará ao devedor a importância que sobejar, considerando-se nela compreendido o valor da indenização de benfeitorias, depois de deduzidos os valores da dívida e das despesas e encargos de que tratam os §§ 2º e 3º, fato esse que importará em recíproca quitação, não se aplicando o disposto na parte final do art. 516 do Código Civil.
  • Se, no segundo leilão, o maior lance oferecido não for igual ou superior ao valor referido no § 2º, considerar-se-á extinta a dívida e exonerado o credor da obrigação de que trata o § 4º. (destaquei)

A interpretação literal desses dispositivos legais leva a crer que, superado os dois leilões públicos extrajudiciais, o bem imóvel objeto da garantia é incorporado ao patrimônio do credor, ou fiduciário, pela consolidação plena da propriedade fiduciária, e a partir daí pode ser o bem imóvel alienado particularmente, sem a possibilidade de restituição de importância ao devedor, ou fiduciante.

Essa é a interpretação dada pelo Superior Tribunal de Justiça até o atual momento, conforme se depreende dos julgados dos Recursos Especiais 1.861.293/SP, 1.654.112/ SP e 1.357.379/SP, que têm em comum a seguinte lição: havendo leilão extrajudicial do imóvel e sendo frustrado o segundo, deve a dívida ser compulsoriamente extinta e as partes contratantes exoneradas das suas obrigações, ficando o imóvel com o credor fiduciário.

Em que pese não haver norma que se aplique de forma igual e justa a todas as situações, parece-me, que é válido aperfeiçoar ou expandir a interpretação do art. 27, § 5º da Lei 9.514/97 partindo de circunstâncias específicas, caso a caso, a fim de evitar injustiça e desiquilíbrio nas relações contratuais envolvendo a extinção dos contratos de alienação fiduciária de imóvel em garantia, isto é, em certas situações específicas será o caso de buscar a interpretação teleológica da norma.

Não só isso, é válido aperfeiçoar ou expandir a interpretação do art. 27, § 5º da Lei 9.514/97 partindo, também, dos princípios gerais do direito civil como um todo, ou seja, buscar interpretar o dispositivo legal como parte do sistema normativo mais amplo que o envolve, ou seja, não se pode deixar de lado a interpretação sistemática da norma.

Essas considerações iniciais acerca do assunto são essenciais para confrontar o posicionamento até então adotado pela Corte Superior e, ao mesmo tempo, elucidar a ideia que se quer chegar ao final deste breve estudo, qual seja, o da vedação ao enriquecimento sem causa nas extinções de contrato com alienação fiduciária em garantia, com suporte no art. 27, § 5º da Lei 9.514/97.

A análise prática que se pretende fazer aqui é a seguinte: caso o imóvel objeto da garantia vier a ser incorporado definitivamente ao patrimônio do credor após a realização dos dois leilões extrajudiciais, sem que tenha havido licitante ou lance igual ou superior ao valor da dívida, pode, em momento seguinte, o produto da venda particular do bem superar a satisfação do crédito do credor sem que haja a obrigação de restituição de valores que sobejar ao devedor.

Todavia, a pergunta que se faz é a seguinte: essa situação prática é capaz de configurar enriquecimento sem causa (CC, art. 884)[1], podendo o devedor pleitear a diferença entre o débito e o crédito apurado com a venda do bem?

Ao que parece a resposta é sim, em certas e específicas situações, a aplicação da norma especial (Lei 9.514/97, art. 27, § 5º) pode acarretar o enriquecimento sem causa (CC, art. 884), o que é explicitamente vedado pelo sistema normativo brasileiro.

A ideia simples que se faz é a seguinte, realizados os dois leilões infrutíferos, sem a presença de licitante ou sem oferta de lance, ocorre a consolidação plena da propriedade do imóvel em nome do credor, o qual realiza a venda particular do imóvel, satisfazendo o seu crédito, contudo, o valor que exceder o limite do crédito, deverá ser repassado ao devedor, sob pena de configurar enriquecimento sem causa.

Para que fique claro a situação em hipótese, façamos um estudo de caso do processo judicial digital (autos nº 5246932-65.2018.09.0051), em tramite no Tribunal de Justiça de Goiás.

Eis a situação do caso real: um contrato de financiamento imobiliário com pacto acessório de alienação fiduciária, firmado entre uma mulher e uma instituição financeira, para aquisição de um apartamento pelo valor de R$1.000.000,00, sendo metade pago com recursos próprios e a outra metade financiada em 294 parcelas.

Em razão do inadimplemento das parcelas do financiamento, a instituição financeira credora, primeiro, notificou a mulher devedora para purgar a mora. Depois, em razão do não pagamento, consolidou-se a propriedade do apartamento em nome da instituição financeira credora, indicando o saldo devedor de R$450.187,76.

Feito isso, passou-se a realização dos dois leilões, conforme exige a lei especial, contudo, sem licitante ou oferta de lance, o contrato e a dívida foram extintos nos termos do art. 27, § 5º da Lei 9.514/97. Após, o apartamento foi incorporado definitivamente ao patrimônio da instituição financeira, que o alienou particularmente pelo valor de R$958.500,00.

Moral da história: houve a satisfação do crédito (R$450.187,76) da instituição financeira credora por meio do produto obtido com a alienação particular do bem imóvel garantia (R$958.500,00). Ocorre que, como a venda superou em muito o valor da dívida, a credora apropriou-se do valor que excedeu o seu crédito (R$508.312,24), sem qualquer restituição de valores à devedora.

A partir desse exemplo real é possível observar que o art. 27, § 5º da Lei 9.514/97, pode em certas e específicas situações, acarretar enorme injustiça e desequilíbrio, como visto na situação exemplificada acima, em que a parte credora após a satisfação integral do seu crédito ainda se apropriou do excedente de R$508.312,24. De outro lado, a parte devedora perdeu o imóvel e todo o valor investido, sem qualquer restituição de valores.

Contudo, o caso judicial em análise, em âmbito recursal no Tribunal de Justiça de Goiás, sob a condução do Desembargador Gilberto Marques Filho, teve um desfecho justo e razoável, resumido nos sábios argumentos transcritos abaixo:

“Primeiro, numa interpretação do § 5º do artigo 27, da Lei 9.514/97, a norma diz claramente que a extinção da dívida e a exoneração da obrigação do credor de restituição se aplica somente quando o maior lance oferecido não for suficiente para quitar o saldo devedor e as despesas legais. Veja que a lei traz a expressão “lance oferecido”, o que significa dizer que nos dois primeiros leilões deve haver a presença de pelo menos um licitante que ofereça um lance para o imóvel.

Não considero razoável estende essa situação para hipóteses de inexistência de licitantes – sem qualquer oferta de lance – para permitir, posteriormente, que o credor fique com um bem muito superior ao valor da dívida.

Segundo, há de se traze a lume a interpretação principiológica, de modo pelo princípio do enriquecimento sem justa causa, não se justifica que um imóvel avaliado em cerca de R$1.000.000,00 e vendido em leilão por R$958.500,00, leve a quitação da dívida em R$ 450.187,76, com a consolidação da propriedade em nome do credor, desonerando-o da obrigação de ressarcir o devedor.

Ora, se o imóvel foi vendido por um valor superior ao saldo devedor, a não devolução do saldo remanescente ao devedor gera uma grande desproporção a favor do credor fiduciário, situação que não merece prosperar, diante do princípio basilar das relações comerciais de vedar o enriquecimento sem justo motivo.

Por isso, defendo que o credor não pode ser exonerado da obrigação de restituir qualquer quantia ao devedor, numa rasa interpretação do artigo 27, § 5º, da Lei nº 9.514/97, quanto o imóvel não for vendido nos dois primeiros leilões extrajudiciais em que não houver licitantes. Isso porque o credor ficará com um bem imóvel o qual poderá ser vendido posteriormente – como de fato foi – por valor igual ou superior ao da avaliação constante no contrato, em claro enriquecimento sem causa.

É certo, o tema é polêmico e comporta inúmeras interpretações. Porém, filio-me à exegese que melhor atende à consecução da justiça e aos fins sociais da lei, para defender o direito de quem sofre a expropriação extrajudicial de ser restituído da diferença que sobejar o valor da dívida pela simples perda do bem imóvel e que tenha sido vendido em leilão extrajudicial.” (destaquei)

Em suma, o Desembargador Gilberto Marques Filho, ao firmar o seu convencimento contrário à interpretação literal do art. 27, § 5º da Lei 9.514/97, sob a análise de caso específico, consignou a prevalência do princípio geral do direito – vedação ao enriquecimento sem justo motivo, a partir de uma interpretação principiológica das normas, especial (Lei 9.514/97) e geral (Código Civil).

No caso exemplificado, o segundo leilão resultou negativo por falta de licitantes e não porque o maior lance oferecido não foi igual ou superior ao valor da dívida, como descreve a norma especial, logo, não há como eximir o credor de devolver o valor que sobejar o seu crédito após realizada a alienação particular do imóvel, como descreve a norma geral.

Nesse ponto, destaca-se que a norma especial traz a expressão “lance oferecido”, o que significa dizer que nos dois leilões públicos extrajudiciais, destinados à alienação do bem dado em garantia para satisfação do crédito do credor em caso de inadimplência do devedor fiduciante, deve haver a presença de pelo menos um licitante que ofereça um lance para o imóvel, sob pena do art. 27, § 5º da Lei 9.514/97 não ter aplicabilidade à situação específica, justamente, em razão da vedação ao enriquecimento sem causa (CC, art. 884).

Veja o que o diz o art. 27, § 5º da Lei 9.514/97: “Se, no segundo leilão, o maior lance oferecido não for igual ou superior ao valor ao valor referido no § 2º, considerar-se-á extinta a dívida e exonerado o credor da obrigação de que trata o § 4º”. (grifei)

Por sua vez, o § 1º do mesmo dispositivo legal, diz que: “§ 1º Se no primeiro leilão público o maior lance oferecido for inferior ao valor do imóvel, estipulado na forma do inciso VI e do parágrafo único do art. 24 desta Lei, será realizado o segundo leilão nos quinze dias seguintes”. (grifei)

Ainda, o § 2º do mesmo dispositivo legal, diz que: “No segundo leilão, será aceito o maior lance oferecido, desde que igual ou superior ao valor da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais”. (grifei)

Nesse sentido e acolhendo todas as ideias acima dispostas, colaciona-se os ensinamentos dos renomados juristas Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe:

 “… na eventualidade de não haver no segundo público leilão licitante ou lance igual ou superior ao valor da dívida, considera in extremis a lei extinta a dívida e quitado o devedor (§§ 5º e 6º), desonerando o credor do encargo de novas tentativas de excussão, mas não da prestação de contas e entrega ao devedor do que eventualmente sobejar.” (RESTIFFE NETO, Paulo, e RESTIFFE, Paulo Sérgio, Propriedade fiduciária imóvel – regime jurídico, questionamentos, jurisprudência. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 175) (destaquei)

A interpretação da norma sob essa ótica é capaz de evitar o enriquecimento sem causa do credor, a exemplo do caso real exemplificado acima, em que existiu um proveito econômico do credor superior ao seu crédito em mais de R$500.000,00 (quinhentos mil reais), o que justificou o posicionamento do magistrado no sentido de reconhecer a imperfeição do art. 27, § 5º da Lei 9.514/97 e, por consequência lógica, determinar que o credor fiduciário restitua ao devedor fiduciante o valor que sobejou.

Em complemento, pode-se dizer também que a lei prevê, em critério de exceção, a possibilidade de ausência de restituição de valor ao devedor fiduciante no caso de haver arrematação do imóvel no segundo leilão em valor igual ao da dívida, é o que diz o art. 27, §§ 5º e 4º da Lei 9.514/97. Ou seja, somente nesta situação é que haveria a possibilidade de não restituir importâncias ao devedor.

Então, a vista do até aqui exposto, inexistindo, no segundo público leilão, licitante ou lance igual ou superior ao valor da dívida, o credor estará obrigado a ressarcir eventual diferença entre o valor apurado com a venda do imóvel e o valor do crédito, equivalente à obrigação de entregar ao devedor o valor que exceder.

Nessa linha de pensamento, parece claro que a norma especial contida na Lei 9.514/97 apresenta uma lacuna, ao limitar a realização de dois leilões públicos para alienação do imóvel, ou por não trazer a solução no caso de sobejar importância após a alienação particular do imóvel depois de realizados os leilões infrutíferos, de modo que, ausente de regulamentação, a solução da questão deve se dar por meio da aplicação das normas extravagantes.

Nesse contexto, diante do silêncio da norma especial, incide a regra geral do Código Civil, aplicável a todas as espécies de garantia fiduciária, por força de seu art. 1.368-A, que assim dispõe: “As demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial”.

Bem por isso, com a imperfeição ou lacuna da lei especial, abre-se espaço para buscar solução na lei geral – Código Civil, que assim preceitua:

Art. 1.364. Vencida a dívida, e não paga, fica o credor obrigado a vender, judicialmente ou extrajudicialmente, a coisa a terceiros, a aplicar o preço no pagamento de seu crédito e das despesas de cobrança, e a entregar o saldo, se houver, ao devedor.

Art. 1.365. É nula a cláusula que autoriza o proprietário fiduciário a ficar com a coisa alienada em garantia, se a dívida não for paga no vencimento.

Consoante se extrai desses dispositivos da norma geral, primeiro, ressalta-se que o credor fiduciário não pode ficar com o bem para si mesmo, pois o ordenamento jurídico brasileiro veda o pacto comissório; segundo, ressalta-se que o credor fiduciário deve alienar o imóvel e ressarcir o devedor fiduciante a diferença entre o valor da dívida e o valor do imóvel, caso haja.

Por sua vez, o art. 903 do Código de Processo Civil diz que: “Pago ao exequente o principal, os juros, as custas e os honorários, a importância que sobrar será restituída ao executado”.

Dessa forma, frente à lacuna existente na Lei 9.514/97, no que concerne a restituição do valor que sobejar após a alienação particular do imóvel em razão dos infrutíferos leilões públicos extrajudiciais, e, partindo da subsidiariedade da norma geral às relações contratuais, há espaço para aplicação do Código Civil e do Código de Processo Civil, a fim de preservar o princípio da proporcionalidade e finalidade social dos contratos.

Isso é plenamente válido, considerando que as deficiências da lei especial podem ser eliminadas a partir das leis extravagantes, podendo ser complementada, inclusive, pelos princípios gerais do direito, assim como estabelecido no art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.

Nesse ponto, reforçando os argumentos anteriores, quanto à aplicação das cláusulas gerais do direito, especialmente, na situação em estudo, tem-se a diretriz da vedação ao enriquecimento sem causa, nos termos do caput, do art. 884, do Código Civil:

Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários. A restituição é devida, não só quando não tenha causa que justifique o enriquecimento, mas também se esta deixou de existir.

Destarte, o enriquecimento sem causa possibilita correção de diversas situações de injustiça, compreendida à luz da cláusula geral inscrita no Código Civil, atuando, portanto, como fonte de obrigação para aquele se enriqueceu à custa de outrem, o qual pode incidir sobre os mais diversos casos do cotidiano.

Nesse sentido, explica Giovani Ettore Nanni:

“… não se pode esquecer que sendo o art. 884 do Código Civil de 2002 uma cláusula geral que proíbe o enriquecimento sem causa, preceito com ampla ocupação no direito obrigacional, merece uma posição de fonte autônoma na legislação, justamente pela circunstância de ser aplicável, em princípio, em qualquer relação jurídica.” (NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 131)

Sobre o tema, destaca-se o julgamento do recurso de apelação n. 0013993-20.2011.8.16.0554, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, de relatoria do Desembargador Walter Cesar Exner, que elucida a questão do enriquecimento sem causa, de forma clara e objetiva, como se afere a seguir:

“… Ora, se fosse obtido lance no leilão extrajudicial em valor superior ao do débito, ainda que inferior ao de avaliação do imóvel, o credor seria obrigado a restituir a diferença.

Não se pode admitir, portanto, que, no caso de ele permanecer com o bem, recebendo desse modo patrimônio equivalente ao valor da sua avaliação, seja desobrigando a devolver esta diferença, ainda maior.

Beneficia-se o credor mais no caso de não haver interessados no leilão, do que na hipótese de o bem ser excutido com êxito, de modo que incorreria o credor em enriquecimento sem causa. …” (destaquei)

Bem a propósito, seguem julgados dos Tribunais Estaduais de São Paulo e Goiás privilegiando a aplicação da cláusula geral do direito que veda o enriquecimento sem causa, senão, vejamos:

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – BEM IMÓVEL – OBRIGAÇÃO DE RESTITUIR QUANTIA CERTA – Procedência da ação – Controvérsia reside no direito do autor à percepção da diferença entre o valor de avaliação do imóvel e o valor da dívida, ante a adjudicação do imóvel pelo réu, além da declaração quanto ao valor correto do TRIBUNAL DE JUSTIÇA PODER JUDICIÁRIO São Paulo Embargos de Declaração Cível nº 1063430-07.2017.8.26.0100/50000 – São Paulo – VOTO Nº 7/11 saldo devedor – Observância ao procedimento previsto no art. 27 da Lei nº 9.514/97 – Não havendo arrematação do bem em valor igual ou maior que a dívida, faz jus o autor à percepção do saldo existente entre o valor de avaliação do imóvel de R$ 650.000,00, e o valor da dívida reconhecido em R$ 151.975,82, a resultar na diferença de R$ 498.024,18 – Sentença mantida – Recurso desprovido, nos termos do acórdão. (TJSP; Apelação Cível 1004312-76.2016.8.26.0281 – Relator: Cláudio Hamilton; Órgão Julgador: 25ª Câmara de Direito Privado; Foro de Itatiba – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 01/08/2019; Data de Registro: 17/05/2020) (destaquei)

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM APELAÇÃO CÍVEL. ERRO MATERIAL. PREMISSA EQUIVOCADA. COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. CONSOLIDAÇÃO DA PROPRIEDADE. AUSÊNCIA DE LANCE NOS DOIS PRIMEIROS LEILÕES. VENDA NO TERCEIRO LEILÃO. PREÇO SUPERIOR À DÍVIDA. INAPLICABILIDADE DO ART. 27, §5º, LEI Nº 9.514/97. ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA. NECESSIDADE DE DEVOLUÇÃO DO SALDO REMANESCENTE. 1. Reconhece-se o erro material decorrente de premissa equivocada, para tomar como verdadeiro o fato de que o imóvel objeto da ação foi alienado no terceiro leilão extrajudicial, e não no segundo, conforme considerado no voto objeto dos aclaratórios. 2. Referido fato altera o raciocínio que conduziu o decisum embargado, pelo que se impõe que se lhe dê nova fundamentação. 3. Não se aplica o disposto no § 5º da Lei nº 9.514/97, o qual exonera o credor da obrigação de devolução da importância que sobejar a venda do imóvel realizada em um terceiro leilão, após frustrados os dois primeiros por ausência de licitantes. Precedente STJ. 5. Ademais, pelo princípio do enriquecimento sem justo motivo, se o imóvel foi vendido em leilão por um valor superior ao saldo devedor, impõe-se ao credor devolver ao devedor o saldo remanescente. 6. Embora com base em fundamentação diversa, mantém-se o dispositivo do voto embargado, o qual reformou a sentença e reconheceu a existência de valor a ser devolvido pela arrematação do imóvel levado a leilão, em montante a ser apurado em liquidação, consideradas as deduções legais do saldo remanescente. Embargos Declaratórios acolhidos. Erro material corrigido. (TJGO, Apelação (CPC) 5246932-65.2018.8.09.0051, Rel. Des(a). GILBERTO MARQUES FILHO, 3ª Câmara Cível, julgado em 27/07/2020, DJe de 27/07/2020). (destaquei)

Conclui-se, a meu ver que, afigura-se bastante razoável a aplicação de normas extravagantes e cláusulas gerais do direito, quando o assunto é o polêmico art. 27, § 5º da Lei 9.514/97, a fim de evitar o enriquecimento sem causa, em certas e específicas situações, como a comentada no decorrer desse breve estudo.

Referencias

CHALHUB, Melhim Namem, Alienação fiduciária: negócio fiduciário, 6ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2019.

RESTIFFE NETO, Paulo, e RESTIFFE, Paulo Sérgio, Propriedade fiduciária imóvel – regime jurídico, questionamentos, jurisprudência. São Paulo: Malheiros, 2009.

NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa, 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012.

[1] Art. 884. Aquele que, sem justa causa se enriquecer à causa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.