Estigmatização da advocacia criminal

*Roberto Serra da Silva Maia

O jurista italiano Francesco Carnelutti, liberal e católico fervoroso que viveu até 1965 [86 anos], já revelou em seu livro “As Misérias do Processo Penal” [1957], que a experiência do advogado [criminalista] “está sob o símbolo da humilhação”, e que apesar de colaborar com a “administração da justiça”, não é devidamente valorizado [“seu lugar é embaixo, e não no alto”], pois não exerce um “trabalho que goze da simpatia do público”, afinal, geralmente atua na defesa daqueles que estão sendo acusados de cometer crimes.

Pelas palavras do renomado jurista já se percebe que ao longo do tempo a advocacia criminal vem sendo estigmatizada, apesar de sua importância e relevância estarem reconhecidas formalmente em inúmeros Tratados Internacionais e na própria Constituição da República Federativa do Brasil (cf. arts. 5º, LV c/c 133).

Essa estigmatização acabou sendo realçada alguns dias atrás no julgamento conjunto das Ações Declaratórias de Constitucionalidade [ADCs] n. 43, 44 e 54, pelo Supremo Tribunal Federal [STF], quando no início da discussão acerca da constitucionalidade do art. 283, do Código de Processo Penal [CPP], à luz do art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal [CF], no que alude a possibilidade de início do cumprimento da pena antes de serem esgotadas todas as possibilidades de recurso [trânsito em julgado].

Após o voto do ministro Marco Aurélio, o ministro Luís Roberto Barroso se utilizou de fundamentos de “ordem pragmática”, para discordar do Relator, e acompanhar a divergência inaugurada pelo ministro Alexandre de Morais.

O ministro Barroso afirmou em seu voto, por exemplo, que bastaria “ter um advogado que manipule o sistema para o processo durar pelo menos uma década”, e que “não foram os pobres que mobilizaram os mais brilhantes e caros advogados do país”. Ao lastrear seu posicionamento nos “incentivos à criminalidade de colarinho branco”, o ministro passou a impressão à sociedade brasileira que os “bons advogados” criminalistas seriam profissionais utilizados por aqueles [malfeitores] que “têm dinheiro para manipular o sistema com recursos procrastinatórios sem fim”, tratando-se, pois, de verdadeiros mercenários que, ao fim e ao cabo, acabavam por contribuir para o “descrédito do sistema de justiça penal junto à sociedade, pela demora na punição e pelas frequentes prescrições, gerando enorme sensação de impunidade”.

Na visão pragmática externada pelo ministro Barroso, os recursos interpostos pela defesa, a despeito de considerados [genericamente] perniciosos ao combate da criminalidade, seriam manejados pelos advogados de forma indevida, protelatória, antiética e abusiva.

Tais argumentos acabaram por alimentar o aviltamento da advocacia criminal, reforçando o imaginário popular de que o “bom advogado” é aquele “anti-herói capaz de evitar que a justiça seja feita”, de requerer a “liberdade ou a absolvição de um culpado”, ou mesmo de “manipular o processo”, protelando-o pela morosidade até alcançar a prescrição.

A crítica “pragmática”, no entanto, não merece minimamente prosperar, por vários motivos.

Primeiro, porque direito ao recurso [duplo grau de jurisdição] é assegurado no art. 8.2, letra “h”, da Convenção Americana de Direitos Humanos, no art. 14.3, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, no art. 2º, do Protocolo VII da Convenção Europeia de Direitos Humanos, dentre outros dispositivos internacionais e nacionais.

Segundo, porque a utilização dos recursos previstos na legislação brasileira se caracteriza como dever do advogado criminalista na defesa de uma pessoa acusada e por ela constituído [art. 23, do Código de Ética e Disciplina da OAB]. Evidente que no caso de eventual abuso do direito de recorrer, ou na constatação do “intuito manifestamente protelatório”, poderá se impor a condenação da “litigância de má-fé” [art. 80, VII, CPC c/c art. 32, Lei 8906/94], com imposição de multa [art. 81, CPC]. Na seara penal, inclusive, possível protelação também ensejará certificação do trânsito em julgado com a consequente baixa dos autos, independentemente da publicação do acórdão (cf. STF, ARE 1220845 AgR-ED/RS, etc).

Portanto, a legislação disponibiliza de mecanismos para conter os abusos, não se podendo apontar a causa da morosidade do Poder Judiciário como sendo o exercício do direito ao recurso ou ao duplo grau de jurisdição.

Por óbvio que neste pequeno texto não se pretende rotular a parte pragmática do voto do ministro Luís Roberto Barroso que envolveu o assaque ao exercício da advocacia criminal de leviano, injusto ou irresponsável, sobretudo se considerado seu histórico profissional, que desvela atuação na qualidade de advogado em casos de grande repercussão perante o STF antes de assumir o cargo de ministro daquela Corte. Não é esse o Estado Democrático de Direito que se pretende fortalecer com este singelo artigo.

É preciso, de todo modo, combater, com veemência, para o bem do Estado Democrático de Direito, a perpetuação dessa estigmatização, afinal, como bem pontuado advogado criminalista Antonio Evaristo de Moraes Filho, a importância da advocacia criminal reside no fato de que ninguém – do Presidente da República ao ministro do STF, perpassando pelo mais simples cidadão – está livre do banco dos réus. Segue a advertência do mencionado criminalista:

“…aos que insistem em não reconhecer a importância social e a nobreza de nossa missão, e tanto nos desprezam quando nos lançamos, com redobrado ardor, na defesa dos odiados, só lhes peço que reflitam, vençam a cegueira dos preconceitos e percebam que o verdadeiro cliente do advogado criminal é a liberdade humana, inclusive daqueles que não nos compreendem e nos hostilizam, se num desgraçado dia precisarem de nós, para livrarem-se das teias da fatalidade…”.

A advocacia criminal, portanto, não pode continuar sendo confundida com a figura do acusado [cliente], nem tratada com discriminação, criminalização, ou preconceito, pois, efetivamente, não haverá Justiça sem a sua plena e livre participação, devendo todas autoridades do Estado [Executivo, Legislativo e Judiciário] ter a cautela e a prudência necessárias nas manifestações para não generalizar ou mesmo invadir a esfera de independência da atuação [recursal] do advogado, expondo-o de modo injusto e estigmatizante ao julgamento social.

Roberto Serra da Silva Maia é advogado criminalista, diretor da OAB-GO, mestre em Direito e professor universitário.